terça-feira, 22 de abril de 2014

Olavo de Carvalho, transcrição de trecho da aula IV do Curso Raízes da Modernidade

[...] Com a progressiva formação da sociedade moderna, como sociedade técnica, industrial, altamente burocratizada, na qual as relações naturais vão sendo cada vez mais substituídas por relações legais, o sentimento de participação comunitária das pessoas vai desaparecendo. [...] Na medida em que o conjunto das relações sociais era [na Idade Média] ao mesmo tempo constituído de relações pessoais diretas, então não existia um abismo entre o indivíduo e a sociedade. Todas as emoções eram compreensíveis, todas as experiências humanas eram transparentes, mesmo aquilo que você odiava não lhe era incompreensível. [...] Ninguém é estranho, as pessoas são diferentes, mas não estranhas. [...] A medida em que estas relações sociais baseadas na pessoa humana direta vão sendo substituídas por relações legais e burocratizadas, tudo muda completamente. Por exemplo, o funcionário que é obrigado a exercer a sua função implacavelmente a despeito de todos os interesses e emoções pessoais envolvidas , não terá tempo de participar das emoções das outras pessoas, pois senão ele não vai aguentar. Isto significa que ele tem que tomar decisões cada vez mais impessoais. Como se o regulamento burocrático fosse uma realidade e as pessoas envolvidas não fossem realidades. Por exemplo, a cobrança de uma dívida. Se um sujeito fosse cobrar uma dívida na Idade Média, ele até poderia ser implacável na sua cobrança, mas ele entendia perfeitamente a situação do outro. Não lhe era completamente alheio. Mas, numa situação já definida pela organização burocrática da convivência, as emoções do outro já não interessam, porque não é uma pessoa, é uma ficha, um número no computador. Isto quer dizer que você pode agir de maneira brutal sobre as pessoas sem ter nenhum sentimento brutal. Na I. Média o cobrador de uma dívida podia até bater ou matar o devedor, mas ele teria que fazer isso pessoalmente. E ele não poderia fazer isso sem estar com raiva do outro. Mas na situação moderna você pode destruir vidas inteiras por uma providência administrativa, tomada com a maior neutralidade, com a maior tranquilidade, sem pensar nas consequências. [...] Por exemplo, certas operações bancárias como estas feitas por grandes investidores, que do dia para noite desgraçam milhões de pessoas, que eles não conhecem, contra as quais ele não têm absolutamente nada e que se pudessem, talvez até ajudariam. Isto quer dizer que entre os seres humanos se interpõe toda uma estrutura de determinações que não tem nada a ver com as pessoas envolvidas, que são literalmente impessoais. Mas este elemento impessoal é o que constitui a nossa experiência cotidiana quase que o tempo todo. Acontece que o mundo da experiência direta humana, o mundo das emoções humanas diretas não tem lugar na estrutura administrativa. E se não tem lugar não pode ser objeto de uma discussão pública, não tem como ser discutido. Só é possível discutir aquilo que está enquadrado nos conceitos gerais, nos dados estatísticos, etc.  Então, na mesma medida em que a convivência na sociedade moderna se despersonaliza, aparece como refúgio a convivência pessoal direta. Mas vivida em termos que não podem corresponder inteiramente às categorias sociais admitidas. Isso que dizer que não havendo mais aquele sentimento de participação comunitário no qual as emoções dos personagens envolvidos são translúcidas para todos e todos sabem o que todo mundo está sentindo, não sendo possível isto, existe como compensação a necessidade de uma aproximação maior entre as pessoas fora do quadro social admitido e legítimo. Então, aparece, por exemplo, a busca do amor pessoal numa intensidade e quantidade que as épocas anteriores desconheceram. Há necessidade de mais experiência amorosa, mais vivência amorosa na situação moderna do que em qualquer outra época. E isto explica “sexo livre”, adultérios, movimento gay, etc. [...] Se vermos o tempo que o cidadão moderno dedica a pensar em sexo e comparar isso com o cidadão da I. Média, chegaríamos a conclusão de que o cidadão é tarado, é louco, só pensa nisso. Se pensarmos que oitenta por cento do movimento da internet são sites de sacanagem, veremos que se criou um monstruoso aparato técnico e ele é usado por pessoas desesperadas, que buscam ali um contato carnal por via eletrônica. Isto é o extremo do desespero. Os indivíduos não estão aguentando viver dentro daquele quadro de impessoalidade mecânica e burocrática e elas querem um alívio para isso. É inteiramente compreensível. Quando as pessoas imbuídas de um sistema moral mais antigo, por ex, são cristãos, se voltam contra isso com uma linguagem condenatória, estão fazendo buraco n´água. O que pregações morais podem fazer contra uma necessidade premente criada pelo próprio artificialismo da situação? [...] De certo modo isto se tornou um dos poucos canais onde as pessoas podem ter uma experiência pessoal efetiva, real, podem se sentir vivas. As pessoas buscam refúgio na convivência pessoal. Porque na sociedade, no trabalho, no exercício das funções públicas, não são pessoas, são apenas funções. Por exemplo, vamos supor uma empresa grande com 20.000 empregados. É possível dentro de uma circunstância dessas prestar atenção nos problemas de cada um? [...] De fato, a tendência geral da sociedade moderna é de tratar os indivíduos apenas pela sua função e não como individualidades concretas e diferenciadas. A pressão das necessidades emocionais humanas, não podendo ser descarregada na vida social pública oficial, ela tem que encontrar outros canais. Um canal são as psicoterapias, grupos de psicoterapias. Se você observar as psicoterapias de grupo você vai observar que a maioria das pessoas não têm nenhum problema clínico, elas simplesmente não tinham com quem conversar. [...] John Carrow, no seu livro sobre o humanismo, mostra que em grande parte a vida real das pessoas fugiu para o mundo dos sonhos. Ou seja, o indivíduo só é ele mesmo no instante em que ele está dormindo. Ali ele diz o que realmente quer, se comporta como ele mesmo e depois acorda, veste o uniforme e volta a ser o mesmo tipo impessoal que era na véspera. Este refluxo da vida interior humana para o mundo dos sonhos já começa no Século XIX e é anterior ao surgimento da psicanálise. Então me pergunto se Dr Freud teria a idéia de procurar a realidade da alma no mundo dos sonhos se ela não estivesse realmente lá? Ou seja, se ela não tivesse sido empurrada para lá por fatores sociais que não tem nada a ver com a psicanálise? Imaginemos a quantidade de tempo que se concedeu no século XX a análise de sonhos. [...] Numa época anterior, ainda na Renascença ou na I. Média, se se dissesse que apareceria uma profissão em que o sujeito fica o tempo todo falando de sonhos, pareceria a coisa mais esquisita do mundo. Então vemos a fuga para a intimidade, a fuga para os sonhos, a fuga para os contatos através de internet, a fuga para a pornografia, a fuga para o sexo livre etc. [...]. Miguel Reale, em seu livro Introdução a Ciência do Direito, inventa um termo horroroso mas que descreve bem, que é o da progressiva jurisfação da vida social. Ou seja, tudo vai saindo do campo das relações naturais e entrando no campo das relações legais. E este processo é absolutamente avassalador, não tem limite. Um dos elementos fundamentais da democracia moderna é a existência de um poder legislativo soberano em relação aos outros poderes e cujas decisões literalmente tem poder de lei sobre os outros.  O que representa haver em cada nação uma corporação de quinhentas, seiscentas pessoas que estão fazendo leis o tempo todo? Quantas leis são feitas em um ano? Vinte, trinta mil? E estas leis vão regulando cada vez mais coisas que antes não eram reguladas. [...] E nós nos acostumamos de tal modo a tantas proibições que elas nos parecem, muitas vezes, a própria garantia de nossos direitos e nossas liberdades, quando na verdade elas são uma tremenda restrição. [...] A importância dos documentos, por exemplo, foi crescendo cada vez mais, até chegar ao ponto de terem mais realidade do que a própria realidade (lembrar o romance de Luigi Pirandello, O Falecido Matias Pascal). Nos acostumamos te tal modo com isso que a posse dos documentos, de certo modo, reforça a nossa identidade, mas é uma identidade que não existe evidentemente. Como é possível o Estado me dizer quem eu sou? Se a identidade oficialmente admitida começa a prevalecer sobre os dados da experiência direta, a consequência disso é imediata. Começa-se a imaginar que a sua identidade é aquela que a sociedade te deu e não aquela que você efetivamente tem por natureza. Automaticamente, se torna difícil conceber que uma pessoa humana seja algo por si mesma e sem o reconhecimento da sociedade. O indivíduo só adquire o estatuto humano pela sociedade e a cultura que lhe conferiram a identidade (este é, alías, o argumento do movimento abortista). É uma idéia falsa, mas se tornou irresistível porque ela não traduz a natureza das coisas, mas traduz a situação efetiva na qual nós vivemos na sociedade moderna. Por isso, é muito difícil argumentar contra o aborto para pessoas que não enxergam a sua identidade em si mesmas, mas naquela figura projetiva que a sociedade colou sobre elas. [...] Por isso, um sentimento de revolta, de ódio contra essas aberrações da sociedade moderna, frequentemente, não se justifica, porque as pessoas estão pensando e acreditando não naquilo que elas deveriam pensar e acreditar, mas naquilo que, de certo modo, são forçadas a acreditar. Não se pode dizer que elas têm culpa disso. Elas não têm idéia de como entraram naquilo. Se uma convicção do sujeito está baseada no próprio sentimento de identidade que ele tem,  não adiante eu mudar a ideia sem mudar a identidade, e mudar a identidade de uma pessoa não é fácil. Fazer o indivíduo perceber que ele tem uma identidade inerente, inata e, por assim dizer, eterna, se ele está persuadido de que ele é um papel social determinado pelo estado, é muito difícil. Este mundo, esta superestrutura burocrática que se sobrepôs às individualidades concretas ela retroage sobre a individualidade e cria novos tipos de individualidade que antes não existiam.  Por exemplo, o funcionário impessoal, não existe isso em parte alguma da história. [...] Os regimes totalitários, por exemplo, não são senão o aperfeiçoamento extremo da burocratização, onde todas as pessoas são conhecidas não por aquilo que elas são na realidade, mas por uma posição social que os outros lhe atribuem, frequentemente, uma posição imaginária. [...] O genocídio é a expressão natural da despersonalização. [...] É sempre um crime de lógica e não de paixão (Albert Camus). Ninguém vai matar 70 milhões de pessoas por que está com raiva delas. Está matando apenas um número, uma entidade abstrata. E isso vai se tornando cada vez mais fácil, porque vai se criando os meios técnicos de se cometer violência sem que o impacto dela retroaja sobre a sua alma. Por exemplo, é possível bombardear todo um acampamento assistindo tudo por satélite. Onde aparecerão algumas figurinhas sendo bombardeadas, como num vídeo game. Não parece realidade. É um efeito desrealizante. Este efeito chega ao ponto em que alguns filmes de ficção, em que assistimos batalhas, parecem mais reais do que um documentário sobre batalhas. [...] Este processo de desrealização e de dessubstancialização da individualidade humana e de substituição por uma entidade abstrata criada legalmente é sem dúvida uma das raízes da modernidade.