[...] Com
a progressiva formação da sociedade moderna, como sociedade técnica,
industrial, altamente burocratizada, na qual as relações naturais vão sendo
cada vez mais substituídas por relações legais, o sentimento de participação
comunitária das pessoas vai desaparecendo. [...] Na medida em que o conjunto
das relações sociais era [na Idade Média] ao mesmo tempo constituído de
relações pessoais diretas, então não existia um abismo entre o indivíduo e a
sociedade. Todas as emoções eram compreensíveis, todas as experiências humanas
eram transparentes, mesmo aquilo que você odiava não lhe era incompreensível.
[...] Ninguém é estranho, as pessoas são diferentes, mas não estranhas. [...] A
medida em que estas relações sociais baseadas na pessoa humana direta vão sendo
substituídas por relações legais e burocratizadas, tudo muda completamente. Por
exemplo, o funcionário que é obrigado a exercer a sua função implacavelmente a
despeito de todos os interesses e emoções pessoais envolvidas , não terá tempo
de participar das emoções das outras pessoas, pois senão ele não vai aguentar.
Isto significa que ele tem que tomar decisões cada vez mais impessoais. Como se
o regulamento burocrático fosse uma realidade e as pessoas envolvidas não
fossem realidades. Por exemplo, a cobrança de uma dívida. Se um sujeito fosse
cobrar uma dívida na Idade Média, ele até poderia ser implacável na sua
cobrança, mas ele entendia perfeitamente a situação do outro. Não lhe era
completamente alheio. Mas, numa situação já definida pela organização burocrática
da convivência, as emoções do outro já não interessam, porque não é uma pessoa,
é uma ficha, um número no computador. Isto quer dizer que você pode agir de
maneira brutal sobre as pessoas sem ter nenhum sentimento brutal. Na I. Média o
cobrador de uma dívida podia até bater ou matar o devedor, mas ele teria que
fazer isso pessoalmente. E ele não poderia fazer isso sem estar com raiva do
outro. Mas na situação moderna você pode destruir vidas inteiras por uma
providência administrativa, tomada com a maior neutralidade, com a maior
tranquilidade, sem pensar nas consequências. [...] Por exemplo, certas
operações bancárias como estas feitas por grandes investidores, que do dia para
noite desgraçam milhões de pessoas, que eles não conhecem, contra as quais ele
não têm absolutamente nada e que se pudessem, talvez até ajudariam. Isto quer
dizer que entre os seres humanos se interpõe toda uma estrutura de
determinações que não tem nada a ver com as pessoas envolvidas, que são
literalmente impessoais. Mas este elemento impessoal é o que constitui a nossa
experiência cotidiana quase que o tempo todo. Acontece que o mundo da
experiência direta humana, o mundo das emoções humanas diretas não tem lugar na
estrutura administrativa. E se não tem lugar não pode ser objeto de uma
discussão pública, não tem como ser discutido. Só é possível discutir aquilo
que está enquadrado nos conceitos gerais, nos dados estatísticos, etc. Então, na mesma medida em que a convivência na
sociedade moderna se despersonaliza, aparece como refúgio a convivência pessoal
direta. Mas vivida em termos que não podem corresponder inteiramente às
categorias sociais admitidas. Isso que dizer que não havendo mais aquele
sentimento de participação comunitário no qual as emoções dos personagens envolvidos
são translúcidas para todos e todos sabem o que todo mundo está sentindo, não
sendo possível isto, existe como compensação a necessidade de uma aproximação
maior entre as pessoas fora do quadro social admitido e legítimo. Então,
aparece, por exemplo, a busca do amor pessoal numa intensidade e quantidade que
as épocas anteriores desconheceram. Há necessidade de mais experiência amorosa,
mais vivência amorosa na situação moderna do que em qualquer outra época. E
isto explica “sexo livre”, adultérios, movimento gay, etc. [...] Se vermos o
tempo que o cidadão moderno dedica a pensar em sexo e comparar isso com o
cidadão da I. Média, chegaríamos a conclusão de que o cidadão é tarado, é
louco, só pensa nisso. Se pensarmos que oitenta por cento do movimento da
internet são sites de sacanagem, veremos que se criou um monstruoso aparato
técnico e ele é usado por pessoas desesperadas, que buscam ali um contato
carnal por via eletrônica. Isto é o extremo do desespero. Os indivíduos não
estão aguentando viver dentro daquele quadro de impessoalidade mecânica e
burocrática e elas querem um alívio para isso. É inteiramente compreensível.
Quando as pessoas imbuídas de um sistema moral mais antigo, por ex, são
cristãos, se voltam contra isso com uma linguagem condenatória, estão fazendo
buraco n´água. O que pregações morais podem fazer contra uma necessidade
premente criada pelo próprio artificialismo da situação? [...] De certo modo
isto se tornou um dos poucos canais onde as pessoas podem ter uma experiência
pessoal efetiva, real, podem se sentir vivas. As pessoas buscam refúgio na
convivência pessoal. Porque na sociedade, no trabalho, no exercício das funções
públicas, não são pessoas, são apenas funções. Por exemplo, vamos supor uma
empresa grande com 20.000 empregados. É possível dentro de uma circunstância dessas
prestar atenção nos problemas de cada um? [...] De fato, a tendência geral da
sociedade moderna é de tratar os indivíduos apenas pela sua função e não como
individualidades concretas e diferenciadas. A pressão das necessidades
emocionais humanas, não podendo ser descarregada na vida social pública
oficial, ela tem que encontrar outros canais. Um canal são as psicoterapias,
grupos de psicoterapias. Se você observar as psicoterapias de grupo você vai
observar que a maioria das pessoas não têm nenhum problema clínico, elas
simplesmente não tinham com quem conversar. [...] John Carrow, no seu livro
sobre o humanismo, mostra que em grande parte a vida real das pessoas fugiu
para o mundo dos sonhos. Ou seja, o indivíduo só é ele mesmo no instante em que
ele está dormindo. Ali ele diz o que realmente quer, se comporta como ele mesmo
e depois acorda, veste o uniforme e volta a ser o mesmo tipo impessoal que era
na véspera. Este refluxo da vida interior humana para o mundo dos sonhos já
começa no Século XIX e é anterior ao surgimento da psicanálise. Então me
pergunto se Dr Freud teria a idéia de procurar a realidade da alma no mundo dos
sonhos se ela não estivesse realmente lá? Ou seja, se ela não tivesse sido
empurrada para lá por fatores sociais que não tem nada a ver com a psicanálise?
Imaginemos a quantidade de tempo que se concedeu no século XX a análise de
sonhos. [...] Numa época anterior, ainda na Renascença ou na I. Média, se se
dissesse que apareceria uma profissão em que o sujeito fica o tempo todo
falando de sonhos, pareceria a coisa mais esquisita do mundo. Então vemos a
fuga para a intimidade, a fuga para os sonhos, a fuga para os contatos através
de internet, a fuga para a pornografia, a fuga para o sexo livre etc. [...].
Miguel Reale, em seu livro Introdução a Ciência do Direito, inventa um termo
horroroso mas que descreve bem, que é o da progressiva jurisfação da vida
social. Ou seja, tudo vai saindo do campo das relações naturais e entrando no
campo das relações legais. E este processo é absolutamente avassalador, não tem
limite. Um dos elementos fundamentais da democracia moderna é a existência de
um poder legislativo soberano em relação aos outros poderes e cujas decisões
literalmente tem poder de lei sobre os outros.
O que representa haver em cada nação uma corporação de quinhentas,
seiscentas pessoas que estão fazendo leis o tempo todo? Quantas leis são feitas
em um ano? Vinte, trinta mil? E estas leis vão regulando cada vez mais coisas
que antes não eram reguladas. [...] E nós nos acostumamos de tal modo a tantas
proibições que elas nos parecem, muitas vezes, a própria garantia de nossos
direitos e nossas liberdades, quando na verdade elas são uma tremenda
restrição. [...] A importância dos documentos, por exemplo, foi crescendo cada
vez mais, até chegar ao ponto de terem mais realidade do que a própria
realidade (lembrar o romance de Luigi Pirandello, O Falecido Matias Pascal).
Nos acostumamos te tal modo com isso que a posse dos documentos, de certo modo,
reforça a nossa identidade, mas é uma identidade que não existe evidentemente.
Como é possível o Estado me dizer quem eu sou? Se a identidade oficialmente
admitida começa a prevalecer sobre os dados da experiência direta, a
consequência disso é imediata. Começa-se a imaginar que a sua identidade é
aquela que a sociedade te deu e não aquela que você efetivamente tem por
natureza. Automaticamente, se torna difícil conceber que uma pessoa humana seja
algo por si mesma e sem o reconhecimento da sociedade. O indivíduo só adquire o
estatuto humano pela sociedade e a cultura que lhe conferiram a identidade
(este é, alías, o argumento do movimento abortista). É uma idéia falsa, mas se
tornou irresistível porque ela não traduz a natureza das coisas, mas traduz a
situação efetiva na qual nós vivemos na sociedade moderna. Por isso, é muito
difícil argumentar contra o aborto para pessoas que não enxergam a sua
identidade em si mesmas, mas naquela figura projetiva que a sociedade colou sobre
elas. [...] Por isso, um sentimento de revolta, de ódio contra essas aberrações
da sociedade moderna, frequentemente, não se justifica, porque as pessoas estão
pensando e acreditando não naquilo que elas deveriam pensar e acreditar, mas
naquilo que, de certo modo, são forçadas a acreditar. Não se pode dizer que
elas têm culpa disso. Elas não têm idéia de como entraram naquilo. Se uma
convicção do sujeito está baseada no próprio sentimento de identidade que ele
tem, não adiante eu mudar a ideia sem
mudar a identidade, e mudar a identidade de uma pessoa não é fácil. Fazer o
indivíduo perceber que ele tem uma identidade inerente, inata e, por assim
dizer, eterna, se ele está persuadido de que ele é um papel social determinado
pelo estado, é muito difícil. Este mundo, esta superestrutura burocrática que
se sobrepôs às individualidades concretas ela retroage sobre a individualidade
e cria novos tipos de individualidade que antes não existiam. Por exemplo, o funcionário impessoal, não
existe isso em parte alguma da história. [...] Os regimes totalitários, por
exemplo, não são senão o aperfeiçoamento extremo da burocratização, onde todas
as pessoas são conhecidas não por aquilo que elas são na realidade, mas por uma
posição social que os outros lhe atribuem, frequentemente, uma posição
imaginária. [...] O genocídio é a expressão natural da despersonalização. [...]
É sempre um crime de lógica e não de paixão (Albert Camus). Ninguém vai matar
70 milhões de pessoas por que está com raiva delas. Está matando apenas um
número, uma entidade abstrata. E isso vai se tornando cada vez mais fácil,
porque vai se criando os meios técnicos de se cometer violência sem que o
impacto dela retroaja sobre a sua alma. Por exemplo, é possível bombardear todo
um acampamento assistindo tudo por satélite. Onde aparecerão algumas figurinhas
sendo bombardeadas, como num vídeo game. Não parece realidade. É um efeito
desrealizante. Este efeito chega ao ponto em que alguns filmes de ficção, em
que assistimos batalhas, parecem mais reais do que um documentário sobre
batalhas. [...] Este processo de desrealização e de dessubstancialização da
individualidade humana e de substituição por uma entidade abstrata criada
legalmente é sem dúvida uma das raízes da modernidade.