quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Segurança versus liberdade - ansiar pela primeira pode nos deixar sem a segunda

 
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A sociedade inteira se terá convertido numa só fábrica e num só escritório, com igualdade de trabalho e igualdade de remuneração. - Lênin (1917)
 
Num país em que o único empregador é o estado, oposição significa morte lenta por inanição. O velho princípio "quem não trabalha não come" foi substituído por outro: "quem não obedece não come". - Leon Trotsky (1937)

A segurança econômica, assim como a falsa "liberdade econômica", é muitas vezes apresentada como condição indispensável da autêntica liberdade.  Em certo sentido, isso é ao mesmo tempo verdadeiro e importante.  É raro encontrar independência de espírito ou força de caráter entre aqueles que não confiam na sua capacidade de abrir caminho pelo próprio esforço.  Todavia, a ideia de segurança econômica não é menos vaga e ambígua do que a maioria dos outros conceitos nesse campo; e por isso, a aprovação geral à reivindicação de segurança pode tornar-se um perigo para a liberdade.  
Com efeito, quando a segurança é entendida num sentido absoluto, o empenho geral em conquistá-la, ao invés de possibilitar maior liberdade, torna-se a mais grave ameaça a ela.
Há um tipo de planejamento estatal que exerce um efeito insidioso sobre a liberdade, tal planejamento é justamente aquele que visa a um tipo específico de segurança.  É o planejamento que se destina a proteger indivíduos ou grupos contra a redução de suas rendas, redução que, embora imerecida, ocorre diariamente numa sociedade competitiva.  É o planejamento contra perdas que impõem duras privações, e que, contudo, são inseparáveis do sistema de concorrência.  A reivindicação desse tipo de segurança é, pois, apenas um outro aspecto da exigência de que deve haver uma "justa remuneração" para cada indivíduo, uma remuneração proporcional aos méritos subjetivos e não aos resultados objetivos do esforço individual.  
Mas essa espécie de segurança ou de justiça não parece conciliável com a livre escolha da ocupação.
Em qualquer sistema no qual a distribuição dos indivíduos entre as várias ocupações e os diferentes setores da economia resulte da escolha individual, é necessário que a remuneração em tais setores corresponda à utilidade dos indivíduos para os outros membros da sociedade, ainda que essa utilidade não seja proporcional ao mérito subjetivo.  Embora os resultados obtidos correspondam com frequência a esforços e intenções, isso não se aplica a qualquer forma de sociedade em todas as circunstâncias. Tal não sucederá, em particular, nos muitos casos em que a utilidade de algum ofício ou habilidade especial é modificada por acontecimentos imprevisíveis. Todos nós conhecemos a trágica situação do homem altamente treinado cuja especialidade, adquirida com esforço, perde de súbito todo o valor por causa de alguma invenção muito benéfica para o restante da sociedade.  O último século está repleto de exemplos dessa espécie, alguns deles atingindo ao mesmo tempo centenas de milhares de pessoas.
O fato de um homem vir a sofrer grande redução dos rendimentos e amarga frustração de todas as suas esperanças sem por isso ter sido responsável, e apesar de sua dedicação e de uma excepcional habilidade, indubitavelmente ofende o nosso senso de justiça. As reivindicações das pessoas assim prejudicadas de que o estado intervenha em seu favor a fim de salvaguardar-lhes as legítimas expectativas conquistarão por certo a simpatia e o apoio popular.  A aprovação geral de tais reivindicações fez com que, na maioria dos países, os governos decidissem agir, não só no sentido de amparar as possíveis vítimas de tais dificuldades e privações, mas também no de assegurar-lhes o recebimento de seus rendimentos anteriores e assim protegê-las contra as vicissitudes do mercado.
Contudo, para que a escolha das ocupações seja livre, a garantia de uma determinada renda não pode ser concedida a todos.  E se for concedida a alguns privilegiados, haverá prejuízo para outros, cuja segurança será, ipso facto, diminuída.  É fácil demonstrar que a garantia de uma renda invariável só poderá ser concedida a todos pela abolição total da liberdade de escolha da profissão.  E, contudo, embora essa garantia geral de expectativas legítimas seja muitas vezes considerada o ideal a ser visado, não é perseguida com afinco.  O que ocorre constantemente é a concessão parcial dessa espécie de segurança a este ou àquele grupo, do que decorre um aumento constante da insegurança daqueles sobre os quais recai o ônus.  Não admira que, em consequência, aumente também de modo contínuo o valor atribuído ao privilégio da segurança, tornando-se mais e mais premente a sua exigência, até que, no final, nenhum preço, nem o da própria liberdade, pareça excessivo.
Se o estado for proteger aqueles indivíduos cuja utilidade foi reduzida por circunstâncias que eles mesmos não poderiam controlar ou prever, e se, por outro lado, o estado for impedir de auferir vantagens imerecidas aqueles indivíduos cuja utilidade aumentou em função de circunstâncias também incontroláveis e imprevisíveis, a remuneração deixaria em breve de ter qualquer relação com a verdadeira utilidade de cada. Passaria a depender da opinião de uma autoridade sobre o que cada pessoa deveria ter feito ou previsto, e sobre a validade de suas intenções.  Tais decisões seriam, em grande medida, arbitrárias.  Como consequência necessária, a aplicação do princípio faria com que pessoas que realizam o mesmo trabalho recebessem remunerações diferentes. As diferenças de remuneração deixariam, assim, de oferecer um estímulo adequado para que os indivíduos empreendessem as mudanças socialmente desejáveis, não sendo sequer possível aos interessados decidir se determinada mudança compensaria o esforço despendido para levá-la a efeito.
Se, porém, as alterações na distribuição dos indivíduos entre as várias ocupações — necessidade constante em qualquer sociedade — já não se podem produzir mediante "recompensas" e "penalidades" expressas em dinheiro (as quais não têm nenhuma relação necessária com o mérito subjetivo), então elas deverão ser efetuadas por meio de ordens diretas.  Quando a renda de uma pessoa é garantida, não se lhe pode permitir que permaneça no emprego unicamente porque este lhe agrada, nem que escolha qualquer outro pelo qual tenha preferência. Como o ganho ou a perda não dependem do fato de o indivíduo optar por permanecer ou não no mesmo emprego, a escolha terá de ser feita por aqueles que controlam a distribuição da renda disponível.
A questão dos estímulos adequados, que surge nesse contexto, é em geral analisada como se se tratasse basicamente de as pessoas estarem ou não dispostas a se esforçarem ao máximo.  Mas, embora isso tenha a sua importância, não constitui todo o problema, nem mesmo o seu aspecto mais relevante.  Não se trata apenas de fazer com que o esforço seja compensador para que cada um dê o melhor de si.  O mais importante é que, se quisermos deixar a escolha ao indivíduo, se se espera que ele esteja em condições de julgar o que tem de ser feito, é preciso proporcionar-lhe um padrão simples de julgamento que lhe permita medir a importância social das diferentes ocupações.  Mesmo com a maior boa vontade, seria impossível a qualquer pessoa fazer uma escolha inteligente entre várias alternativas, se as vantagens que estas oferecem não tivessem relação com sua utilidade social.  Para saber se, em resultado de certa mudança, um indivíduo deveria abandonar uma profissão e um ambiente ao qual se afeiçoou e trocá-los por outros, é necessário que a alteração dos valores relativos dessas ocupações para a sociedade seja expressa nas remunerações que oferecem.
O problema reveste-se de importância ainda maior porque, no mundo que conhecemos, torna-se improvável que um indivíduo dê o melhor de si por muito tempo, a menos que seu interesse esteja diretamente envolvido. A maioria das pessoas necessita, em geral, de alguma pressão externa para se esforçar ao máximo.  Assim, o problema dos incentivos é bastante real, tanto na esfera do trabalho comum como na das atividades gerenciais.  A aplicação da engenharia social a toda uma nação — e é isto o que significa planejamento — gera problemas de disciplina difíceis de resolver.
A política governamental hoje adotada em toda parte, de conceder o privilégio da segurança ora a este grupo, ora àquele, vai rapidamente criando condições em que o anseio de segurança tende a sobrepujar o amor à liberdade.  Isso porque, a cada vez que se confere segurança completa a um grupo, aumenta-se a insegurança dos demais. Se garantirmos a alguns uma fatia fixa de um bolo de tamanho variável, a parte deixada aos outros sofrerá maior oscilação, proporcionalmente ao tamanho do todo. E o aspecto essencial da segurança oferecida pelo sistema de concorrência — a grande variedade de oportunidades — torna-se cada vez mais restrito.
No sistema de mercado, a segurança só pode ser concedida a determinados grupos mediante o gênero de planejamento conhecido como 'regulação'.  O "controle", isto é, a limitação da concorrência (leia-se "da produção") de modo que os preços finais assegurem um ganho "adequado", é o único meio pelo qual se pode garantir um certo rendimento aos produtores numa economia de mercado.  Isso, porém, envolve necessariamente uma redução de oportunidades para os demais.  Para que o produtor, seja ele dono de empresa ou operário, receba proteção contra a concorrência de preços mais baixos, outros, em pior situação, serão impedidos de participar da prosperidade relativamente maior das indústrias controladas.  Qualquer restrição à liberdade de ingresso numa profissão reduz a segurança de todos os que se acham fora dela.
E, à medida que aumenta o número daqueles cujo rendimento é assegurado dessa forma, restringe-se o campo das oportunidades alternativas abertas aos que sofrem uma perda de rendimento — enquanto que, para os que são atingidos por qualquer mudança, diminui do mesmo modo a possibilidade de evitar uma redução fatal da sua renda. E se, como vem acontecendo com frequência, em cada categoria em que ocorre uma melhora de condições permite-se que seus membros excluam os demais para garantir a si mesmos o ganho integral sob a forma de salários ou lucros mais elevados, os que exercem profissões cuja demanda diminuiu não têm para onde se voltar, e a cada mudança produz-se grande número de desempregados. Não há dúvida de que foi em grande parte por causa da busca de segurança por esses meios nas últimas décadas que aumentou a tal ponto o desemprego e, por conseguinte, a insegurança para vastos setores da população.
Numa sociedade em que a mobilidade ficou tão reduzida como resultado dessas restrições, é de absoluta falta de perspectiva a situação daqueles que se encontram fora do âmbito das ocupações protegidas, e um abismo os separa dos privilegiados possuidores de empregos a quem a proteção contra a concorrência tornou desnecessário fazer concessões para dar lugar aos que estão de fora.  Tal situação, na verdade, só pode ser avaliada por aqueles que a viveram.  Não se trata de os privilegiados cederem o seu lugar, mas apenas de partilharem a desventura comum mediante certa redução da própria renda, ou, muitas vezes, simplesmente mediante algum sacrifício das suas perspectivas de melhora.  A proteção do estado ao seu "padrão de vida", ao "preço razoável" ou à "renda profissional", que julgam um direito, impede que isso aconteça.
Em consequência, em vez de preços, salários e rendimentos individuais oscilarem, são agora o emprego e a produção que ficam sujeitos a violentas flutuações.  Nunca houve pior e mais cruel exploração de uma classe por outra do que a exercida sobre os membros mais fracos ou menos afortunados de uma categoria produtora pelos que já desfrutam de posições estáveis, e isso foi possibilitado pela "regulamentação" da concorrência.  Poucas coisas têm tido efeito tão pernicioso quanto o ideal da "estabilização" de certos preços (ou salários), pois, embora ela garanta a renda de alguns, torna cada vez mais precária a posição dos demais.
Assim, quanto mais nos esforçamos para proporcionar completa segurança interferindo no sistema de mercado, tanto maior se torna a insegurança; e, o que é pior, maior o contraste entre a segurança que recebem os privilegiados e a crescente insegurança dos menos favorecidos.  E quanto mais a segurança se converte num privilégio, e quanto maior o perigo para os que dela são excluídos, mais será ela valorizada.  À medida que o número dos privilegiados aumenta, e com ele o hiato entre a sua segurança e a insegurança dos demais, vai surgindo uma escala completamente nova de valores sociais.  Já não é a independência, mas a segurança, que confere distinção e status; o que faz de um homem um "bom partido" é antes o direito a uma pensão garantida do que a confiança em sua capacidade — ao passo que a insegurança se converte numa terrível condição de pária, à qual estão condenados para sempre aqueles a quem na juventude foi negado ingresso no porto seguro de uma posição assalariada.
Essa evolução foi acelerada por outro efeito das doutrinas socialistas: o deliberado menosprezo por todas as atividades que envolvem risco econômico e a condenação moral dos lucros que compensam os riscos assumidos, mas que só poucos podem obter.  Não podemos censurar os nossos jovens quando preferem o emprego seguro e assalariado do funcionalismo público ao risco do livre empreendimento, pois desde a mais tenra idade ouviram falar daquele como sendo uma ocupação superior, mais altruísta e mais desinteressada.  A geração de hoje cresceu num mundo em que, na escola e na imprensa, o espírito da livre iniciativa é apresentado como indigno e o lucro como imoral, onde se considera uma exploração dar emprego a cem pessoas, ao passo que chefiar o mesmo número de funcionários públicos é uma ocupação honrosa.
As pessoas mais velhas poderão considerar exagerada essa imagem da situação atual, mas a experiência diária do professor de universidade não deixa dúvidas de que, como resultado da propaganda anticapitalista, a alteração dos valores já está muito adiantada em relação às mudanças que até agora se têm verificado nas instituições deste país. Resta ver se, transformando as nossas instituições para atender às novas reivindicações, não destruiremos inadvertidamente valores que ainda reputamos superiores.
Numa sociedade em que o indivíduo conquista posição e honras quase exclusivamente em função de ser um servidor assalariado do governo; em que o cumprimento do dever prescrito é considerado mais louvável do que a escolha do próprio campo de atividade; em que todas as ocupações que não conferem um lugar na hierarquia oficial ou o direito a um rendimento fixo são julgadas inferiores e até certo ponto aviltantes — seria demais esperar que a maioria prefira por muito tempo a liberdade à segurança.
E quando só se pode optar entre a segurança numa posição de dependência e a extrema precariedade numa situação em que tanto o fracasso quanto o êxito são desprezados, poucos resistirão à tentação da segurança ao preço da liberdade.  Tendo-se chegado a esse ponto, a liberdade torna-se quase um objeto de escárnio, pois só pode ser alcançada com o sacrifício de grande parte das boas coisas da vida.  Nessas condições, não surpreende que um número cada vez maior de pessoas se convença de que, sem segurança econômica, a liberdade "não vale a pena", e se disponha a sacrificar esta em troca daquela.
Nada é mais funesto do que o hábito, hoje comum entre os líderes intelectuais, de exaltar a segurança em detrimento da liberdade.  Urge reaprendermos a encarar o fato de que a liberdade tem o seu preço e de que, como indivíduos, devemos estar prontos a fazer grandes sacrifícios materiais a fim de conservá-la.  Para tanto, faz-se mister readquirir aquela convicção que Benjamin Franklin expressou numa frase aplicável a tanto a indivíduos quanto a nações: "aqueles que se dispõem a renunciar à liberdade essencial em troca de uma pequena segurança temporária não merecem liberdade nem segurança".
 
Artigo originalmente publicado em 1944
 

(1899-1992) foi um membro fundador do Mises Institute. Ele dividiu seu Prêmio Nobel de Economia, em 1974, com seu rival ideológico Gunnar Myrdal "pelos seus trabalhos pioneiros sobre a teoria da moeda e das flutuações econômicas e por suas análises perspicazes sobre a interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais".
 

 

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Requiem (Verdi)





"São Miguel Arcanjo, sede nosso refúgio contra as maldades e ciladas do demônio..."




"Dentre os anjos fiéis a Deus, no meio de todas estas lutas, houve um que se destacou. Não se tratava de um anjo superior, mas o seu amor era superior. Foi ele quem manteve mais viva a chama da fidelidade nos piores momentos da batalha. Quando tudo estava escuro parecia que a metade dos anjos ia se rebelar. Foi destacado no bem e a sua fé iluminou a muitos. Foi ele que no momento mais escuro, na hora mais terrível, na qual as multidões começaram a duvidar, no meio do inicial silêncio geral ele gritou: Quem como Deus? Foi assim que ficou o seu nome, Miguel, o lutador infatigável e invencível. Miguel continuava a se destacar como guerreiro, a luz do seu veemente amor iluminou a muitos anjos que estavam confusos. O seu amor arrebatador derrubou a muitos que lutavam em favor do erro. Inclusive aqueles que combatiam com Lúcifer reconheciam que nenhum dardo envenenado com suas razões podia penetrar a couraça de sua fé inquebrantável. No meio da dúvida ele foi imbatível. Ele é representado com uma couraça, mas ele não portava nenhuma couraça material, tratava-se de uma couraça espiritual impenetrável às seduções lançadas pelos iníquos. A única arma dele era a espada da verdade, da verdade sobre Deus. Miguel conhecia melhor a Deus que os inteligentes, porque O amava mais. Por essa razão, aqueles que foram ao seu encontro tiveram que recuar" (Pe. José Antônio Fortea, “História do Mundo dos Anjos”).

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O Culto do Sentimentalismo


Por Rodrigo Constantino 
“O sentimentalismo é a expressão da emoção sem julgamento.” (Theodore Dalrymple)
Na era das redes sociais, o narcisismo dos seres humanos acabou ainda mais estimulado. Expressar nobres emoções – verdadeiras ou não – passou a ser extremamente comum. Fosse algo restrito a essa necessidade de aparecer, tudo bem. O problema é que isso acabou tomando conta do debate político, e o maior sacrificado foi o argumento racional.
É o que mostra Theodore Dalrymple em Spoilt Rotten: The Toxic Cult of Sentimentality. Ao falar desse sentimentalismo, claro que não estamos falando de algo novo no mundo; mas não resta dúvida de que o fenômeno tem se expandido bastante nas últimas décadas. A explicação passa pelo avanço tecnológico e pelas mudanças culturais.
A origem filosófica disso tudo talvez esteja em Rousseau e sua imagem romântica de “bom selvagem”. Ao retratar as crianças como “puras” e os adultos como corrompidos, Rousseau instigou uma visão de que tudo que é mais “natural” e, portanto, menos civilizado, é melhor, mais genuíno, mais louvável. Era o caminho aberto para que os bárbaros se julgassem superiores.
No campo da educação, os efeitos dessa mentalidade foram devastadores. Um “construtivismo” mal calibrado iria dizer que cada um aprende em seu próprio ritmo, que não há hierarquia do saber, que o professor ou o aluno possuem apenas “opiniões diferentes”, cada um à sua maneira. A horizontalidade nas salas de aula, o enfraquecimento da noção de conhecimento objetivo, a suspensão do julgamento acerca dos méritos individuais, tudo isso iria contribuir para a decadência da qualidade do ensino, principalmente o público.
Quando alguém critica quem fala “nós pega o peixe” e é acusado de “elitista”, o maior prejudicado é o aluno que aprende errado. Esse tipo de sentimentalismo, que impede um parecer mais realista para não “ofender” os demais, prejudica justamente os mais pobres e humildes, reféns dessa redoma criada por uma elite culpada.
A educação não é o único setor afetado. Esse romantismo coloca em um altar tudo aquilo que é “espontâneo”, vis-à-vis aquilo que exige treinamento, esforço e dedicação. Podemos imaginar o que isso causou no campo das artes, por exemplo. Na verdade, não precisamos imaginar; basta observar. Qualquer tipo de lixo artístico passou a ser visto como interessante ou “original”, se produzido de forma “espontânea”.
Quando os “sentimentos” passam a ser tão mais importantes que o conhecimento, cria-se um ambiente onde vale tudo, onde qualquer um pode alegar se “sentir” de certa forma, e isso basta para todo tipo de reclamo frente a sociedade. Para “vencer” um debate, basta expressar com mais veemência seus supostos sentimentos, e fim de papo. Uma sociedade assim vai produzir um contingente enorme de histéricos, de pessoas com reações histriônicas para se destacar em meio à multidão.
Um dos resultados mais nefastos dessa mentalidade foi a falência da responsabilidade individual. Rousseau embalou em sua filosofia aquilo que muitos queriam ouvir: que eles nascem bons e que seus erros são fruto da sociedade. Todo tipo de bandido, de marginal, de indecente, de escroque, encontrou nisso uma bóia da salvação, uma justificativa fantástica para seus atos condenáveis. O sentimentalismo enaltece os piores e, com isso, pune os melhores.
No mundo das aparências, parecer nobre ou uma vítima tem bastante valor, independente da realidade. Um exemplo citado por Dalrymple, que foi médico em várias prisões, são os pais que tatuam o nome de seus filhos no braço, bem à mostra. Não podemos generalizar, mas o autor acredita que em vários casos isso pode muito bem substituir uma solicitude genuína para com os rebentos. Na falta de cuidados reais, o corpo é marcado para que o mundo veja o contrário da verdade.
Da mesma forma, os atos de caridade se transformam em propaganda pública, para todos tomarem conhecimento. Jesus, no Sermão da Montanha, alertou justamente contra tal hipocrisia. No mundo da internet, ela cresceu exponencialmente. Basta um clique de curtir em uma página do Facebook, basta colocar o nome de uma tribo indígena no perfil, basta compartilhar uma campanha para salvar os pandas ou as baleias, que a pessoa se sente a mais nobre do mundo, enquanto os outros não passam de seres insensíveis que não acompanham sua nobreza.
A privacidade foi para o espaço também. Não se conserva mais os sentimentos. Eles devem ser expostos o tempo todo, e quem não o faz, só pode ser um psicopata insensível. Aquele que não coloca para fora tudo aquilo que está “sentindo” é visto como um pária, quase um inimigo do povo. Só é virtuoso quem demonstra todo o seu sentimentalismo. E isso, naturalmente, alimentou sobremaneira a vitimização no mundo.
Qualquer um que clama ser uma vítima obtém o status de superioridade moral sobre os demais. Vivemos em uma época em que as pessoas competem para ver quem sofreu mais e, com isso, destacar-se na estima dos outros. Só é digno quem sofreu. Por isso tantos livros com relatos de tragédias pessoais, algumas forjadas de forma fraudulenta. Por isso tantos movimentos de minorias vitimizadas em busca de recompensas. Quando o sentimentalismo abunda, a vitimização explode, para explorar essa fraqueza infantil.
A visão cristã de “pecado original” diz o contrário desse mito romântico de Rousseau: os homens nasceriam imperfeitos e poderiam buscar seguir na direção do aperfeiçoamento. Em outras palavras, a besta homem precisa ser domesticada, civilizada, e a responsabilidade é de cada um por seus próprios atos. Claro que vamos sofrer influências grandes do ambiente, da família, da sociedade; mas, em última instância, somos os responsáveis pelo que fazemos e escolhemos, temos o livre-arbítrio.
Ao se substituir essa visão pela romântica, abrem-se os portões do inferno, onde cada um alega ser uma vítima, às vezes de suas próprias emoções. Concluo com o alerta de Dalrymple: “O culto do sentimento destrói a capacidade de pensar, ou mesmo a consciência de que é necessário pensar”.