Ao presidir a Missa de Véspera de natal celebrada na Basílica de São Pedro no dia 24 à noite, o Papa Bento XVI sublinhou que "com a glória de Deus nas alturas, está relacionada a paz na terra entre os homens. Onde não se dá glória a Deus, onde Ele é esquecido ou até mesmo negado, também não há paz".
O Santo Padre lamentou em sua homilia a existência de correntes de pensamento populares que "afirmam o contrário: as religiões, mormente o monoteísmo, seriam a causa da violência e das guerras no mundo".
Segundo as mesmas correntes de pensamento "primeiro seria preciso libertar a humanidade das religiões, para se criar então a paz; o monoteísmo, a fé no único Deus, seria prepotência, causa de intolerância, porque pretenderia, fundamentado na sua própria natureza, impor-se a todos com a pretensão da verdade única.".
O Santo Padre indicou que embora seja "incontestável algum mau uso da religião na história, não é verdade que o «não» a Deus restabeleceria a paz".
"Se a luz de Deus se apaga, apaga-se também a dignidade divina do homem. Então, este deixa de ser a imagem de Deus, que devemos honrar em todos e cada um, no fraco, no estrangeiro, no pobre. Então deixamos de ser, todos, irmãos e irmãs, filhos do único Pai que, a partir do Pai, se encontram interligados uns aos outros".
O Papa assinalou que "o tipos de violência arrogante que aparecem então com o homem a desprezar e a esmagar o homem, vimo-los, em toda a sua crueldade, no século passado.".
"Só quando a luz de Deus brilha sobre o homem e no homem, só quando cada homem é querido, conhecido e amado por Deus, só então, por miserável que seja sua situação, sua dignidade é inviolável".
Bento XVI remarcou que "no decurso de todos estes séculos, não houve apenas casos de mau uso da religião; mas, da fé no Deus que Se fez homem, nunca cessou de brotar forças de reconciliação e magnanimidade. Na escuridão do pecado e da violência, esta fé fez entrar um raio luminoso de paz e bondade que continua a brilhar".
"Cristo é a nossa paz e anunciou a paz àqueles que estavam longe e àqueles que estavam perto".
O Santo Padre também pediu a Deus para que Ilumine a quantos acreditam que devem praticar violência em nome da religião, para que aprendam a compreender o absurdo da violência e a reconhecer o vosso verdadeiro rosto.
"Ajudai a tornarmo-nos homens «do vosso agrado»: homens segundo a vossa imagem e, por conseguinte, homens de paz", rogou.
O Papa exortou os fiéis a ousarem "o passo que vai mais além, que faz a «travessia», saindo dos nossos hábitos de pensamento e de vida e ultrapassando o mundo meramente material para chegarmos ao essencial, ao além, rumo àquele Deus que, por sua vez, viera ao lado de cá, para nós. Queremos pedir ao Senhor que nos dê a capacidade de ultrapassar os nossos limites, o nosso mundo; que nos ajude a encontrá-Lo, sobretudo no momento em que Ele mesmo, na Santa Eucaristia, Se coloca nas nossas mãos e no nosso coração.".
"Supliquemos-Lhe para que a curiosidade santa e a santa alegria dos pastores nos toquem nesta hora também a nós e assim vamos com alegria até lá, a Belém, para o Senhor que hoje vem de novo para nós, concluiu".
Terceira Pregação do Advento do Padre Raniero Cantalamessa, OFM Cap., pregador da Casa Pontifícia, dirigida na manhã do dia 21 de dezembro de 2012.
Depois de refletir sobre a graça do ano da fé e sobre o aniversário do
concílio Vaticano II, dedicamos esta última meditação do advento ao terceiro
grande tema do ano, a evangelização.
O papa convidou a Igreja a fazer deste ano uma oportunidade de
redescobrir a "alegria do encontro com Cristo", a alegria de ser
cristãos. Ecoando essa exortação, eu gostaria de falar sobre como evangelizar
através da alegria, procurando permanecer o mais fiel possível ao tempo
litúrgico atual, em preparação para o Natal.
1. A alegria escatológica
Nos evangelhos da infância, inspirado pelo Espírito Santo, Lucas
conseguiu não só apresentar fatos e personagens, mas também recriar a atmosfera
e o clima daqueles eventos. Um dos mais evidentes elementos desse mundo
espiritual é a alegria. A piedade cristã não se enganou quando deu à infância
de Jesus o nome de "mistérios gozosos", mistérios de alegria.
A Zacarias, o anjo promete "alegria e exultação" pelo
nascimento do filho, e que muitos "se alegrarão" com a sua vinda (cf.
Lc 1, 14). Há uma palavra grega que, a partir deste momento, reaparecerá na
boca de vários personagens de modo contínuo: é o termo agallìasis,
que indica "a alegria escatológica pela irrupção do tempo messiânico".
Ao ouvir a saudação de Maria, o bebê "regozijou-se" no ventre de
Isabel (Lucas 1, 44), sinalizando, assim, a alegria do "amigo do
esposo" pela presença do esposo (Jo 3, 29). O ápice acontece no cântico de
Maria: "Meu espírito se alegra (egallìasen) em Deus" (Lc 1,
47); espalha-se na alegria tranquila de amigos e parentes ao redor do berço do
precursor (cf. Lc 1, 58) e explode, finalmente, com pleno vigor, no nascimento
de Cristo, na declaração dos anjos para os pastores: "Eis que vos anuncio
uma grande alegria" (Lc 2, 10).
Não são apenas mostras dispersas de alegria, mas uma onda de alegria
calma e profunda, que percorre os "evangelhos da infância" do começo
ao fim e se expressa de muitas maneiras diferentes: no entusiasmo com que Maria
se levanta para ir até a casa de Isabel e os pastores para irem ver a criança;
nos gestos humildes, e típicos da alegria, que são as visitas, os bons desejos,
as saudações, os parabéns, os presentes. Mas, acima de tudo, a alegria se
expressa na maravilha e na sincera gratidão desses protagonistas: "Deus
visitou o seu povo! [...] Lembrou-se da sua santa aliança". O que todos
tinham pedido em oração, que Deus se lembrasse das suas promessas, era agora
realidade! Os personagens dos "evangelhos da infância" parecem mover-se
e falar na atmosfera de sonho cantada pelo Salmo 126, o Salmo do retorno do
exílio:
"Quando o Senhor libertou os prisioneiros de Sião,
parecia um sonho.
Então a nossa boca se encheu de riso
e a nossa língua soltou-se em cantos de alegria.
Disseram assim entre as nações:
O Senhor fez grandes coisas por eles.
Grandes coisas fez por nós o Senhor,
inundou-nos de alegria".
Maria incorpora a máxima expressão deste salmo quando exclama: "Fez
grandes coisas em mim o Todo-Poderoso". Estamos diante do exemplo mais
puro da "sóbria ebriedade" espiritual. É uma verdadeira “ebriedade”
espiritual, mas é "sóbria". Eles não se exaltam, não se preocupam em
ter um lugar mais importante ou menos importante no incipiente Reino de Deus.
Não se preocupam nem mesmo com o final de tudo: Simeão diz que agora o Senhor
pode deixá-lo partir em paz. O que importa é que a obra de Deus vá em frente,
não importa se com eles ou sem eles.
2. Da liturgia à vida
Passemos agora da bíblia e da liturgia para a vida. Este é sempre o
objetivo da palavra de Deus. A intenção do evangelista Lucas não é apenas
narrar, mas envolver o público e arrastá-lo, como os pastores, em procissão
alegre até Belém. "Aqueles que lêem estas linhas”, diz um exegeta moderno,
“são chamados a partilhar a alegria. Apenas a comunidade concelebrante dos
crentes em Cristo pode estar à altura desses textos" (H. Schürmann, O
Evangelho de Lucas, I, Paideia, Brescia 1983).
Isto explica porque os evangelhos da infância têm pouca coisa a dizer a
quem busca neles apenas a história e ao invés muito a dizer a quem busca também
o significado da história, como faz o Santo Padre em seu último volume sobre
Jesus. São muitos os fatos acontecidos, mas não são “históricos” no sentido
alto do termo, porque não deixaram nenhum vestígio na história, não criaram
nada. Os fatos relativos ao nascimento de Jesus são fatos históricos no sentido
mais forte, não só porque aconteceram, mas incidiram, e de forma decisiva, na
história do mundo.
De onde nasce a alegria? A fonte da alegria é Deus, a Trindade. Mas nós
estamos no tempo e Deus está na eternidade: como é que a alegria pode passar
entre esses dois planos tão distantes? Se questionarmos a bíblia, descobriremos
que a fonte imediata da alegria está no tempo: é o agir de Deus na história.
Deus que age! No ponto em que "cai" uma ação divina, é produzida uma
vibração e uma onda de alegria que se espalha pelas gerações; mais ainda, no
caso de ações da Revelação, elas se espalham para sempre.
A ação de Deus é, cada vez, um milagre que maravilha o céu e a terra:
"Exultai, ó céus, porque o Senhor agiu!”, diz o profeta. “Rejubilai,
profundezas da terra!" (Is 44, 23; 49, 13). A alegria que vem do coração
de Maria e das outras testemunhas do início da salvação se baseia toda nesta
razão: Deus ajudou Israel! Deus agiu! Deus fez grandes coisas!
Como pode, esta alegria pela ação de Deus, chegar até a igreja de hoje e
contagiá-la? Primeiro, pela memória, no sentido de que a Igreja
"relembra" as obras maravilhosas de Deus em seu favor. A Igreja é
convidada a fazer suas as palavras da Virgem: "Ele fez grandes coisas em
mim, o Todo-Poderoso". O magnificat é a canção que Maria cantou primeiro e
legou à Igreja para prolongá-la pelos séculos. Grandes coisas, de fato, fez o
Senhor pela Igreja nestes vinte séculos!
Temos, em certo sentido, mais razões objetivas para nos alegrarmos do
que Zacarias, Simeão, os pastores e toda a Igreja primitiva. Ela começou
"carregando a semente para a semeadura", como diz o Salmo 126,
mencionado acima; ela recebeu promessas, como "Eu estou convosco!", e
mandados, como "Ide pelo mundo inteiro". Já nós vimos o cumprimento.
A semente cresceu, a árvore do Reino tornou-se imensa. A Igreja de hoje é como
o semeador que "volta com alegria”.
Quantas graças, quantos santos, quanta sabedoria de doutrina e riqueza de
instituições, quanta salvação operada nela e através dela! Que palavra de
Cristo não encontrou cumprimento perfeito? Cumpriram-se as palavras "No
mundo tereis aflições" (João 16, 33), mas também as palavras "As
portas do inferno não prevalecerão" (Mt 16, 18).
Com que direito a Igreja pode tornar sua, perante o sem-número dos seus
filhos, a maravilha da antiga Sião e dizer: “Quem os gerou para mim? Eu não
tinha filhos e era estéril; estes, quem os criou?" (Is 49, 21). Quem,
olhando para trás com os olhos da fé, não vê cumpridas perfeitamente na Igreja
as palavras proféticas sobre a nova Jerusalém, reconstruída depois do exílio?
"Levanta os olhos e olha ao teu redor: todos eles se reúnem e vêm a ti.
Teus filhos vêm de longe [...] Tuas portas estarão abertas por sempre [...]
para deixar virem a ti as riquezas das nações" (Is 60, 4.11).
Quantas vezes a Igreja teve de alargar, nestes vinte séculos, ainda que
nem sempre rápido nem sem resistências, o "espaço da sua tenda", a
sua capacidade de acolher, de deixar entrar a riqueza humana e cultural dos
diferentes povos! Para nós, os filhos da Igreja, que nos nutrimos "da
abundância do seu seio", é que vem o chamado do profeta a nos alegrarmos
pela Igreja, "a brilhar de alegria com ela", depois de participar do
seu luto (cf. Is 66, 10).
A alegria pelo agir de Deus chega até nós, os crentes de hoje, pela via
da memória, porque vemos as grandes coisas que Deus fez por nós no passado. Mas
há outro modo, não menos importante: a via da presença, porque vemos que, mesmo
agora, no presente, Deus está agindo entre nós, na Igreja.
Se a Igreja de hoje, no meio de todos os problemas e atribulações que a
golpeiam, quer reencontrar o caminho da coragem e da alegria, ela deve abrir os
olhos para o que Deus está hoje fazendo nela. O dedo de Deus, que é o Espírito
Santo, ainda está escrevendo na Igreja e nas almas histórias maravilhosas de
santidade, que um dia, quando desaparecer todo pecado, farão que se olhe para o
nosso tempo com espanto e santa inveja. Fechamos os olhos, ao fazer isso, aos
muitos males que afligem a Igreja e às traições de muitos dos seus ministros?
Não. Mas se o mundo e sua mídia não destacam na Igreja nada além dessas coisas,
é bom levantarmos o olhar e vermos também seu lado bom, sua santidade.
Em cada época, mesmo na nossa, o Espírito diz à Igreja, como no tempo do
deutero-Isaías: "Agora te narro coisa nova e secreta, de que sequer
suspeitavas. São coisas criadas agora, em vez de há muito tempo" (Is 48,
6-7). Não será que é "coisa nova e secreta" esse fôlego poderoso do
Espírito que ressuscita o povo de Deus e desperta em seu meio carismas de todo
tipo, ordinários e extraordinários? Este amor pela palavra de Deus? Esta
participação ativa dos leigos na vida da Igreja e na evangelização? O compromisso
constante do magistério e de muitas organizações em favor dos pobres e dos que
sofrem e o desejo de consertar a unidade rompida do Corpo de Cristo? Em que
época passada a Igreja teve tal série de papas doutos e santos como de um
século e meio para cá, e tantos mártires da fé?
3. Uma relação diferente entre a alegria e a dor
Do eclesial, passamos para o existencial e pessoal. Alguns anos atrás,
houve uma campanha do ateísmo militante cujo slogan publicitário, afixado no
transporte público de Londres, dizia: "Deus provavelmente não existe.
Então pare de se atormentar e desfrute da vida!".
O mais insidioso desse slogan não é a premissa "Deus não
existe" (que precisa ser provada), mas a conclusão: "Desfrute da
vida!". A mensagem subjacente é que a fé em Deus impede as pessoas de
aproveitarem a vida, que a fé é inimiga da alegria. Sem ela haveria mais
felicidade no mundo! Precisamos dar uma resposta a essa insinuação que mantém
distantes da fé especialmente os jovens.
Jesus provocou, a propósito da alegria, uma revolução tamanha que é
difícil exagerar sobre o seu alcance e que pode ser de grande ajuda na
evangelização. É um pensamento que eu acho que já manifestei neste mesmo lugar,
mas o assunto o exige novamente. Existe uma experiência humana universal: nesta
vida, prazer e dor se sucedem com a mesma regularidade com que, após uma onda
no mar, sucede-se um mergulho e um vácuo que aspira o náufrago de volta.
"Um não-sei-quê de amargo”, escreveu o poeta pagão Lucrécio, “surge do
íntimo de cada prazer e nos angustia em meio às delícias" (Lucrécio, De
rerum natura, IV, 1129 s). O uso de drogas, o abuso do sexo, a violência
homicida, em seu momento proporcionam a ebriedade momentânea do prazer, mas
conduzem à dissolução moral e, muitas vezes, até física da pessoa.
Cristo inverteu a relação entre prazer e dor. “Em vez da alegria, Ele
suportou a cruz" (Hebreus 12, 2). Não era mais um prazer que terminava em
sofrimento, mas um sofrimento que conduz à vida e à alegria. Não é apenas uma
ordem diferente das coisas; é a alegria, desta forma, que tem a última palavra,
e não o sofrimento; e é uma alegria que vai durar para sempre. "Cristo
ressuscitado dos mortos não morre mais; a morte não tem mais domínio sobre
ele" (Romanos 6,9). A cruz termina na Sexta-Feira Santa, mas a felicidade
e a glória do domingo da Ressurreição se estendem para sempre.
Esta nova relação entre sofrimento e prazer se reflete até na forma de
medir o tempo na bíblia. No cômputo humano, o dia começa com a manhã e termina
com a noite; na bíblia, começa com a noite e termina com o dia: "E foi a
noite e a manhã: o primeiro dia", diz o relato da criação (Gênesis 1, 5).
Na liturgia também a festa começa com as vésperas da vigília. O que isto
significa? Que, sem Deus, a vida é um dia que termina na noite; com Deus, é uma
noite, e às vezes uma "noite escura", que termina no dia, e um dia
sem ocaso.
Mas devemos evitar uma objeção fácil: a alegria, então, é apenas para
depois da morte? Esta vida, para os cristãos, não é nada mais do que um
"vale de lágrimas"? Pelo contrário: ninguém experimenta nesta vida a
verdadeira alegria como os verdadeiros crentes. Conta-se que um dia um santo
clamou a Deus: "Chega de alegria! Meu coração não pode conter mais tanta
alegria!". Os crentes, exorta o apóstolo, são "spe gaudentes",
alegres na esperança (Rm 12, 12), o que não significa apenas que eles "esperam
ser felizes" (na vida após a morte), mas também que eles "são felizes
por esperar", felizes já, agora, graças à esperança.
A alegria cristã é interior, não vem de fora, mas de dentro, como alguns
lagos alpinos que se alimentam não de um rio, mas de uma nascente que jorra em
seu próprio fundo. Nasce do agir misterioso e presente de Deus no coração do
homem em graça. Pode causar abundância de alegria até nos sofrimentos (cf. 2
Cor 7, 4). É "fruto do Espírito" (Gl 5, 22, Rm 14, 17) e se expressa
na paz do coração, na plenitude do significado, na capacidade de amar e ser
amado e, acima de tudo, na esperança, sem a qual não pode haver alegria.
Em 1972, por sugestão de Herbert von Karajan, o Conselho da Europa
adotou como hino oficial da Europa unida a Ode à Alegria que encerra a Nona
Sinfonia de Beethoven. Trata-se, certamente, de um dos ápices da música
mundial, mas a alegria que ele canta é vaga, não realizada; é um grito que sobe
do coração humano, mais do que uma resposta que desce até ele.
Na Ode de Schiller, que inspirou a letra do hino, lemos palavras
inquietantes: "Aqueles que sentiram a alegria de ter um amigo ou uma boa
esposa, aqueles que conheceram, ainda que apenas por uma hora, o que é o amor,
estes se aproximem! Mas quem não souber de nada disso, que se afaste, chorando,
do nosso círculo”. A alegria que os homens "bebem do seio da
natureza" não é para todos, mas apenas para alguns poucos privilegiados
pela vida.
Isto é muito distante da linguagem de Jesus, que diz: "Vinde a mim,
todos vós que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei" (Mt 11, 28).
O verdadeiro hino cristão à alegria é o magnificat de Maria. Ele fala de uma
exultação (agallìasis) do espírito pelo que Deus fez por ela e faz por
todos os humildes e famintos da terra.
4. Testemunhar a alegria
Esta é a alegria que temos de testemunhar. O mundo busca a alegria.
"Só escutar o seu nome – escreve Santo Agostinho – todos se levantam e
olham para as tuas mãos, para ver se você é capaz de dar algo às suas
necessidades". Todos queremos ser felizes. É algo comum a todos, bons e
maus.
Quem é bom, é bom porque é feliz; quem é mal, só é mal porque espera,
com isso, ser feliz. Se todos nós amamos a alegria é porque, de alguma maneira
misteriosa, a conhecemos; porque se não a conhecêssemos – se não tivéssemos
sido feitos para ela -, não a amaríamos. Este desejo da alegria é a parte do
coração humano naturalmente aberta para receber a “alegre mensagem”.
Quando o mundo bate à porta da Igreja – mesmo quando faz isso com
violência e raiva – é porque busca a alegria. Os jovens, especialmente,
procuram a alegria. O mundo ao seu redor é triste. A tristeza, por assim dizer,
nos encurrala, mais no Natal que no resto do ano. Não é uma tristeza que
depende da falta de bens materiais porque é muito mais evidente nos países
ricos do que nos países pobres.
Em Isaías lemos estas palavras, dirigidas ao povo de Deus: "eis o
que dizem vossos irmãos que vos odeiam, que vos renegam por causa de meu nome:
Que o Senhor manifeste sua glória para que vejamos vossa alegria!” O mesmo
desafio é dirigido, silenciosamente, ao povo de Deus, também hoje. Uma Igreja
melancólica e medrosa não estaria, por isso, à altura da sua tarefa; não
poderia responder às expectativas da humanidade e sobretudo dos jovens.
A alegria é o único sinal que até mesmo os não-crentes são capazes de
receber e que pode colocá-los seriamente em crise. Não argumentos e censuras. O
testemunho mais bonito que uma esposa pode dar ao seu esposo é um rosto alegre.
Porque isso fala por si mesmo; fala que ele foi capaz de preencher plenamente a
sua vida, de fazê-la feliz. Este é também o testemunho mais bonito que a Igreja
pode dar ao seu Esposo divino.
São Paulo, dirigindo aos cristãos de Filipos aquele convite à alegria,
que marca toda a terceira semana do Advento: “Alegrai-vos sempre no Senhor.
Repito: alegrai-vos!”, explica também como é possível testemunhar, na prática,
esta alegria: “Seja conhecida de todos os homens a vossa bondade” (Fil 5, 4-5).
A palavra "afabilidade” traduz aqui um termo grego (epieikès) que indica
todo um conjunto de atitudes feito de clemência, indulgência, capacidade de
saber ceder, de não ser exigentes. (É o mesmo vocábulo do qual deriv a palavra
epicheia, usada no direito!).
Os cristãos testemunham, por isso, a alegria quando colocam em prática
estas disposições; quando, evitando toda amargura e ressentimento inútil no
diálogo com o mundo e entre si, sabem irradiar confiança, imitando, desta
maneira, a Deus, que faz chover sobre os injustos. Quem é feliz, no geral, não
é amargo, não sente a necessidade de apontar tudo e sempre; sabe relativizar as
coisas, porque conhece algo que é maior. Paulo VI, na sua “Exortação apostólica
sobre a Alegria”, escrita nos últimos anos do seu pontificado, fala de um
“olhar positivo sobre as pessoas e sobre as coisas, fruto de um espírito humano
iluminado e do Espírito Santo”. Até mesmo dentro da Igreja, não apenas para
aqueles que estão de fora, há uma necessidade vital do testemunho da alegria.
São Paulo falava de si e dos outros apóstolos: “Não porque pretendamos dominar
sobre a vossa fé. Queremos apenas contribuir para a vossa alegria” (2 Cor 1,
24). Que definição maravilhosa da tarefa dos pastores na Igreja! Colaboradores
da alegria: aqueles que infundem segurança às ovelhas do rebanho de Cristo, os
capitães valorosos que, com o seu olhar tranquilo, animam os soldados
envolvidos na luta.
Em meio a provas e calamidades que afligem a Igreja, especialmente em
algumas partes do mundo, os pastores podem repetir, também hoje, aquelas
palavras que Neemias, um dia, depois do exílio, dirigiu ao povo de Israel
abatido e em lágrimas: “não haja nem aflição, nem lágrimas [...], porque a
alegria do Senhor é a vossa força" (Ne 8, 9-10).
Que a alegria do Senhor, Santo Padre, veneráveis padres, irmãos e irmãs,
seja realmente, a nossa força, a força da Igreja. Feliz Natal!
Quem, no Brasil, convidado a assistir a um show de Natal com elenco amador numa igreja evangélica de província, seria louco o bastante para ir lá com a expectativa de encontrar um espetáculo artisticamente relevante? Pois bem, acabo de sair da Assembléia de Deus do West End de Richmond, Virginia, ainda mal refeito de um choque cultural. Sincerely Yours , comédia musical natalina com script de Kathy Craddock baseado numa idéia de Pat Bragg e equipe, música e regência de Ron Klipp e direção de Bob Laughlin, é um espetáculo digno da Broadway, mais caprichado do que tudo o que já vi nos palcos brasileiros. São mais de duzentos atores cantando, dançando e fazendo acrobacias, numa coreografia complexíssima dirigida por mão certeira. A platéia vibra com a ação rápida, e a música entusiasticamente alegre se impregna na sua alma deixando uma impressão inesquecível.
SÁTIRA - O enredo é uma sucessão de situações cômicas absurdas, no melhor estilo Frank Capra, concebidas a partir da pergunta: como reagiria Papai Noel (Santa Claus, para os americanos) diante da atual campanha dos ateus, materialistas e anticristãos para escorraçar o Natal da vida pública? Sátira de um conflito muito real que põe em risco o destino de toda a sociedade americana, a história começa na véspera do Natal, com os ajudantes do velhinho, na maior excitação, enchendo o trenó de presentes e esperando a partida para mais uma viagem através do mundo. Mas o chefe não aparece: está trancado em casa, mortalmente deprimido, diante de uma pilha de cartas de meninos e meninas modernizados, insolentes, que desprezam o nascimento de Jesus e só querem saber de brinquedos caros – um deles prefere até sua parte em dinheiro. Um show de egoísmo e insensibilidade. Dar presentes, nessas circunstâncias, só serve para fomentar a vaidade e o orgulho. Sentindo-se um corruptor involuntário da infância, Papai Noel se condena: "Todo o trabalho da minha vida foi um tiro que saiu pela culatra".
DOUTORZINHO - A sra. Claus tenta animá-lo, juntando um grupo de crianças para fazer uns afagos no ego do velho, mas as crianças só dão gafes freudianas e reforçam a impressão de que a infância está mesmo estragada. Erguendo placas para formar o nome "Santa", conseguem até trocá-lo por "Satan". Papai Noel afunda no total desespero. A esposa, atendendo à sugestão de tagarelas da vizinhança, vai ao cabelereiro se embonecar toda para ver se desperta algum ânimo no marido, mas enquanto isso ele é removido a um hospital pelo Social Security. Em vão ele protesta que não há nada de errado com ele, que o problema é com as crianças. Em cenas de uma comicidade alucinante, o paciente é submetido a todas as humilhações radiológicas, dietéticas, sexológicas e psiquiátricas de que é capaz a medicina moderna, personificada num doutorzinho de dez anos de idade. Quando volta, com a bunda doendo das injeções, Santa Claus nem repara no penteado da mulher, que então lhe passa um sabão em regra, acusando-o de ter perdido seu antigo entusiasmo visionário e se transformado num egoísta senil, rabugento, intoxicado de autopiedade, como o Scrooge de Conto de Natal de Dickens (leitura proibida em escolas "politicamente corretas"). Quanto mais ela fala, mais o marido piora. No fim, ele está decidido: não vai a parte alguma, as crianças do mundo que se danem. A sra. Claus resolve então entregar ela própria os presentes, mas os ajudantes não parecem considerá-la muito convincente nas funções de Papai Noel.
CONSPIRAÇÃO - Nesse ínterim, um investigador nomeado pela comunidade descobre que por trás de tudo há uma conspiração para desmoralizar o Natal sob argumentos hipócritas. A trama vem de uma ONG internacional do crime que reúne os piores tipos de todos os tempos: Lex Luthor, o Pingüim, Cruela, a Rainha Malvada, o Capitão Gancho e outros da mesma laia – uma caricatura cruel da ACLU, a União Americana dos Direitos Civis, cujo nome encobre uma quadrilha de puxa-sacos de Saddam Hussein, Bin Laden, Fidel Castro e Hugo Chávez, empenhados em proibir árvores de Natal, monumentos religiosos e qualquer menção pública ao nome de Deus (exceto, é claro, para os muçulmanos). Só que os bandidos da peça foram mais inteligentes que a ACLU: em vez de atacar diretamente o Natal, empreenderam contra ele uma campanha de desinformação, trocando as cartas de crianças para Papai Noel por mensagens forjadas para desorientar o velhinho.
Mas, antes mesmo que lhe chegue a revelação da trama, ele recebe uma carta atrasada, que escapou à falsificação geral. O remetente, Aaron Williams, de Richmond, Virginia, não quer nada para si: pede apenas algum consolo para sua mãe, entristecida pela morte de um cãozinho doméstico. Ao ler as palavras de despedida, "Sincerely yours", "sinceramente seu", Papai Noel se dá conta de que o sentido do Natal não está perdido enquanto subsistir numa só alma viva. É a lembrança de um Deus que se oferece em sacrifício a cada pessoa numa mensagem de amor: "sincerely yours". Reencorajado pelos bons sentimentos do menino, ele já começa a voltar atrás na sua recusa de viajar, quando chegam os mensageiros do detetive e, contando tudo, lhe mostram que, por trás da imagem de um mundo totalmente materialista e descristianizado, fabricada de propósito pelos conspiradores para denunciá-la em seguida e culpar o capitalismo, ainda existem milhões de Aarons Williams. O sr. e a sra. Claus partem então para entregar os presentes, e a primeira casa em que param é, evidentemente, a de Aaron. Junto à cama do menino adormecido há um presépio que se transfigura em realidade. Jesus Cristo está nascendo naquele momento.
Já é o terceiro Natal em que a Assembléia de Deus do West End, com uma nova peça a cada ano, mostra o poder da sua inventividade teatral e musical. Vale a pena uma espiada no site do grupo, http://www.gloriouschristmasnig hts.com .
LEX LUTHOR - O espetáculo, porém, não é um fato isolado. Por toda parte pipocam as reações tardias mas vigorosas da sociedade americana contra quatro décadas de "revolução cultural" planejada para expulsar o cristianismo da cena pública. A tropa-de-choque anticristã, financiada em grande parte por George Soros, o Lex Luthor do mundo real, bem como por governos estrangeiros interessados na destruição cultural dos EUA, atua nas universidades, no show business, na grande mídia e nas corporações milionárias, mas sua arma decisiva é o ativismo judicial, que permite mudar o sentido das leis sem ter de passar pela fiscalização democrática. "Os juízes – confessou cinicamente Leo Pfeffer, um dos mentores da campanha anticristã – podem obrigar o povo a aceitar o que eles julgam melhor para ele, mas que ele não aceitaria de legisladores eleitos."
SUPERSTIÇÕES - O momento decisivo da revolução cultural foram os anos 60 -70 – uma época de estupidez sem igual, em que, com seus nomes trocados para eufemismos publicitários encantadores, a escravização da humanidade ocidental aos traficantes de drogas, a elevação do banditismo às alturas de uma força político-militar de escala mundial, a transformação do processo educacional num sistema de repressão sistemática da inteligência, a liquidação em massa dos bebês no ventre de suas mães, o abandono dos valores judaico-cristãos e sua substituição pelas superstições grotescas da "Nova Era", a destruição generalizada dos laços familiares e, por fim, a entrega da Indochina à sanha assassina dos comunistas (que aí acabaram matando em dois anos de paz cinco vezes mais gente do que a guerra havia matado em quase duas décadas) foram celebrados como vitórias imorredouras da liberdade e da civilização contra a barbárie e as trevas. Todos esses jihads demoníacos eclodiram juntos, com um sincronismo e uma unidade de fontes que já deveriam bastar para desmoralizar a crença numa transformação cultural espontânea, infundida na população pelos próprios regentes dessa orquestração de campanhas, com o propósito de camuflar sua autoria e dar ao processo, postiçamente, a autoridade avassaladora de uma fatalidade histórica ou de um desígnio da Providência.
Os efeitos de longo prazo do ataque multilateral foram devastadores. Seus frutos mais maduros são a recente universalização do terrorismo e a farsa mundial das ditaduras sangrentas da China e do mundo islâmico prometendo libertar a humanidade da "opressão americana" com a ajuda do narcotráfico internacional, dos sanguessugas da ONU e das fundações Soros, Ford e Rockefeller, financiadoras de tudo o que não presta no mundo. O mero discurso dessa gente soaria grotesco se a capacidade de discernimento da platéia ocidental não tivesse sido embotada por quatro décadas de intoxicação cultural. A aliança de comunistas, radicais islâmicos e burocratas globalistas é demasiado parecida com um conluio entre o Pingüim, o Coringa e a Mulher-Gato para não ser notada logo à primeira vista, exceto por um Batman de porre.
Na ocasião em que as coisas começaram, foi tudo tão rápido que a impressão de uma origem impessoal e espontânea se tornou difícil de evitar. Mas hoje sabe-se muito mais sobre a meticulosa – e caríssima – engenharia da revolução cultural. Quem, tendo uma boa retaguarda de conhecimentos sobre estratégia revolucionária e marxismo cultural, leia os livros de E. Michael Jones ( Libido Dominandi: Sexual Liberation and Political Control e John Cardinal Krol and the Cultural Revolution ), Charlotte Thomson Iserbyt ( The Deliberate Dumbing Down of America ), Lee Penn ( False Dawn ), Janet L. Folger ( The Criminalization of Christianity ), Pascal Bernardin ( Machiavel Pedagogue ) e Ricardo de la Cierva ( Las Puertas del Infierno ), não terá dificuldade em juntar os pontos e perceber como tudo isso foi montado, quem montou e quanto custou (mais que o suficiente para eliminar a fome de muitos Terceiros Mundos). A internet colocou uma infinidade de materiais preciosos à disposição dos interessados em compreender o processo (creio já ter recomendado aqui os sites www.discoverthenetwork.org ewww.activistcash.com), cuja unidade estratégica e financeira já não se pode negar nem muito menos ocultar mediante o surrado apelo ao carimbo de "teoria da conspiração".
SUPREMA CORTE - Na escala local dos EUA, o processo, por trás da inabarcável vastidão dos seus efeitos, foi até bem simples na sua concepção estratégica. O ataque, desferido desde várias fontes, começava com propaganda de massas e guerra psicológica, e culminava em decisões judiciais que, atendendo a pressões do ativismo, consagravam em obrigação legal propostas imorais e criminosas que jamais passariam no Congresso. Os tribunais e especialmente a Suprema Corte, usurpando sistematicamente as atribuições do Legislativo, foram o instrumento encarregado de dar, em cada batalha da revolução cultural, o tiro de misericórdia, (o livro-padrão a respeito é Men in Black. How the Supreme Court Is Destroying America , de Mark R. Levin). Assim foi, por exemplo, com as decisões da Suprema Corte que proibiram a prece nas escolas públicas, suprimiram a ajuda estatal às escolas religiosas, liberaram a indústria da pornografia e, no processo fraudulento "Roe vs. Wade", legalizaram o aborto. Essas batalhas continuam: sob a liderança da ACLU, as tropas da revolução cultural buscam agora remover monumentos religiosos dos edifícios públicos e proibir que as árvores de Natal sejam chamadas de árvores de Natal (devem ser "holyday trees", "árvores de boas-festas", genericamente, para não ferir os sublimes sentimentos dos ateus, dos materialistas e principalmente dos muçulmanos, cuja religião tem cada vez mais direitos especiais.
HUMANISMO LAICO - Nas primeiras décadas do ataque, a intelectualidade cristã, auto-intoxicada pelas esperanças insensatas do Concílio Vaticano II (intensamente manipulado desde dentro e desde fora pela KGB – v. o livro citado de Ricardo de La Cierva), estava justamente tratando de abrir os braços para seus inimigos sem nem de longe imaginar que tramavam a sua morte iminente. Deslumbrados pelos avanços da ciência econômica, os liberais clássicos e conservadores, por seu lado, começavam a embebedar-se de entusiasmo mágico pelos poderes da economia de mercado e passaram a apostar tudo nela, unilateralmente, descuidando da luta cultural e até permitindo-se aderir ao "humanismo" laico e materialista que, nos EUA e na Europa, se disseminou entre as classes ricas como o principal aliado do comunismo e do radicalismo islâmico na guerra contra a civilização ocidental. Só muito recentemente começaram a emergir desse estado de idiotice útil e a colaborar na reação dos cristãos ao cerco opressivo que os torna marginais no país que fundaram.
Essa reação tem crescido muito nos últimos anos. Não há nenhum Soros ou Rockefeller por trás dela, mas a massa dos cristãos provou ser capaz de mobilizar recursos formidáveis e atacar nos pontos certos. Milhares de livros, revistas, jornais e sites da internet defendem hoje os direitos dos religiosos. Um militante cristão colocou a ACLU em palpos de aranha com um processo pela sonegação de milhões de atestados de estupro em abortos de meninas menores de idade. O direito de rezar em público foi devolvido em centenas de escolas por via judicial. O jornalismo pró-cristão (Foxnews, WorldNetDaily, Newsmax, Rush Limbaugh) ocupa um espaço cada vez maior, aproveitando a vaga aberta pela desmoralização de gigantes "politicamente corretos" como a CBS e o New York Times. E muitas cadeias de lojas que haviam suprimido de suas propagandas de fim de ano a expressão "árvores de Natal" acabaram cedendo à pressão de milhões de cartas de cristãos indignados, mobilizados por uma campanha da American Family Association. A Lowe's e o Walmart já afinaram. A Walgreens pediu desculpas e prometeu que no ano que vem o bom e velho Natal estará de volta nos seus cartazes.
PRÓ-CRISTÃOS - Mas, é claro, toda essa mudança não surgiu do nada. A recuperação começou na esfera da intelectualidade superior, muitos anos atrás, quando a cena pública parecia definitivamente seqüestrada pelo materialismo militante. Entre as décadas de 80 e 90, discretamente, o pensamento cristão e pró-cristão já havia conquistado uma superioridade intelectual inegável. Nada no campo adversário se comparava às obras de Bernard Lonergan, Eric Voegelin, Thomas Molnar, Roger Kimball, Hilton Kramer, John Ellis e muitos outros. Enquanto os materialistas perdiam até mesmo o embalo do pensamento marxista e voltavam às fórmulas simplistas do século XIX (darwinismo, materialismo não-dialético, etc.), os cristãos se mostravam capazes de uma criatividade sem par na filosofia, nas ciências humanas, na crítica cultural. Entre os liberais clássicos da economia, uma retomada da consciência dos fundamentos morais e religiosos do capitalismo (v. Alejandro Chafuen, Faith and Liberty ) tende cada vez mais a neutralizar o apelo do humanismo laico. E um fenômeno particularmente auspicioso foi o surgimento de uma intelectualidade judaica fortemente pró-cristã. Com o tempo, escritores judeus como Michael e David Horowitz, Don Feder e o rabino Daniel Lapin acabaram se destacando entre os mais eloqüentes defensores dos direitos dos cristãos nos EUA. A situação, no conjunto, tende a melhorar muito.
O espetáculo da Assembléia de Deus do West End de Richmond é apenas um entre inumeráveis sinais dessa mudança. Santa Claus ainda sofre dores na bunda, mas já saiu da depressão.
Vindo quase juntos como vieram, a rejeição nacional do desarmamentismo, a CPI da Terra que condena as invasões de fazendas como crimes hediondos, a espetacular cassação de José Dirceu e a crescente reação anti-aborto entre os parlamentares – criando a esperança de que o projeto-fraude da deputada Jandira Feghali venha a ser rejeitado – talvez indiquem algo mais do que a simples desmoralização geral do petismo. Talvez sejam o sintoma de uma mudança mais profunda. O que me leva a pensar isso é que tudo se produziu sem a interferência de nenhuma oposição conservadora politicamente organizada (nunca as acusações de "conspiração" soaram tão forçadas) e até sem nenhuma campanha cultural anti-esquerdista. Ao contrário: o establishment inteiro – partidos, universidades, mídia, movimento editorial – continua impregnado de esquerdismo até à medula, e completamente ignorante das idéias conservadoras, que ele facilmente substitui por suas caricaturas esquerdistas tomadas como realidades. Como é possível que opiniões ignoradas, sem qualquer representação pública e sem um só canal de atuação política, terminem por prevalecer sobre a ideologia dominante sustentada em verbas praticamente sem fim?
O que me parece é que o sucesso da revolução cultural gramsciana alcançou seus limites naturais quando a longa preparação da mentalidade popular para que aceitasse qualquer proposta vinda da elite esquerdista cedeu lugar à conquista ativa e ao exercício do poder de Estado. A pura sedução dos "corações e mentes" não faz senão criar predisposições vagas, simpatias hipotéticas, a confiança da boca para fora em mudanças futuras só nebulosamente vislumbradas. É fácil manter o povo num estado de apatetado deslumbramento ante os ideais esquerdistas enquanto estes não têm nenhuma tradução prática e não sofrem o teste da realidade. Uma vez que se passa da simples hegemonia psicológica à conquista e exercício do poder, é preciso usar de meios concretos de ação que, fatalmente, não se parecem em nada com a imagem rósea da pureza socialista. Qualquer militante sério sabe disso perfeitamente bem. Um José Dirceu jamais caiu na esparrela de achar que poses de Madre Teresa fossem um substitutivo eficaz do maquiavelismo gramsciano ou da amoralidade leninista. Ele é de certo modo um herói das esquerdas. Foi o homem que se incumbiu da tarefa indispensável de sujar as mãozinhas "éticas" para transfigurar possibilidades etéreas em armas efetivas. Um partido revolucionário sem roubo, fraude, propinas, dinheiro ilícito do Exterior, é uma impossibilidade pura e simples. Desde os tempos em que garganteava superioridade ética o PT já sabia que teria de mergulhar fundo na delinqüência para realizar suas ambições políticas maiores, e já se preparava para isso pelo menos desde a fundação do Foro de São Paulo, em 1990. O que não sabia é que, na passagem, podia se atrapalhar ao ponto de quebrar a pata como um jumento na travessia de um mata-burros.
Ao contrário do que aconteceu nos EUA, onde a revolução cultural entrou em refluxo sob os golpes de uma intelectualidade cristã e conservadora diligente e criativa, no Brasil quarenta anos de maquiavelismo gramscista estão sendo abortados simplesmente desde dentro, pela mágica inexplicável da burrice. O problema é que, quando a força hegemônica se extingue a si mesma, sem um único adversário para sequer remover o seu cadáver, o mau cheiro da sua decomposição pode se impregnar por muito tempo no campo de batalha vazio.
P. S. -- Vocês não se iludam com as aparências. Aquele velhinho maluco com a bengala, em Brasília, não era o Yves Hublet. Era eu. Não saí da Virginia, mas, juro, era eu. Esse prazer ninguém me tira. E acho que alguns milhões de brasileiros sentem o mesmo.
Olavo de Carvalho Só
existe um motivo para celebrar o Natal, mas esse motivo é tão amplamente
ignorado que as festas natalinas devem ser consideradas uma superstição em
sentido estrito, a repetição ritualizada de uma conduta habitual que já não tem
significado nenhum e na qual, portanto, cada um está livre para projetar as
fantasias bobas que bem entenda.
Jesus
Cristo, encarnação do Verbo Divino, ou inteligência de Deus, veio ao mundo para
oferecer-se como vítima sacrificial única
e definitiva, encerrando um ciclo histórico que
durava desde as origens da humanidade e que era regido essencialmente pela Lei
do Sacrifício (v. Ananda Coomaraswamy, A
Lei do Sacrifício, e René Girard, O
Bode Expiatório).
A
Lei do Sacrifício é inerente à estrutura da existência cósmica. Só Deus tem a
plenitude do ser, e o que quer que exista sem ser Deus tem uma existência
precária, fundada num débito ontológico insanável, que na escala da alma humana
se manifesta como culpa.
A
Lei do Sacrifício não pode ser suspensa e jamais o foi.
O
que Nosso Senhor Jesus Cristo fez foi cumpri-la toda de uma vez, instituindo em
lugar do Sacrifício a Eucaristia, que é a recordação do ato sacrificial
definitivo. A recordação passa então a ter o valor de uma repetição sem
necessidade de novas vítimas.
Antes
as vítimas se somavam: 1 + 1 + 1 + 1... Agora a vítima única se multiplica por
si mesma no ato da Eucaristia: 1 x 1 x 1 x 1... Façam as contas e compreenderão
por que o Natal deve ser celebrado.
O
problema é que o fim de um ciclo histórico não traz necessariamente, para as
gerações seguintes, a consciência da mutação ocorrida.
Essa
consciência deve ser reconquistada e retransmitida de geração em geração, e na
sociedade moderna essa transmissão cessou já faz algum tempo. Pouquíssimas
pessoas têm uma consciência clara do que ganharam com o Natal. A maioria, mesmo
quando recebe presentes, não sabe que eles apenas simbolizam um ganho muito
maior que já foi obtido 2003 anos atrás.
Esse
ganho pode ser explicado em poucas palavras:
Todo
homem, pelo simples fato de existir, é atormentado pela culpa e vive num
constante discurso interior de acusação e defesa, que produz medo, ódio,
inveja, ciúme, busca obsessiva de aprovação. Esses sentimentos tornam o homem
vulnerável às palavras más, às acusações e insinuações que lhe chegam de seus
semelhantes, da cultura ambiente ou de seu próprio interior. O conjunto dessas
acusações e insinuações é o espírito demoníaco, que em razão da culpa mesma tem
poder incalculável sobre o ser humano. Em busca de proteção contra esse poder,
o homem se submete aos maus e aos intrigantes, isto é, aos representantes do
próprio espírito demoníaco, acreditando que aqueles que podem feri-lo devem
também poder ajudá-lo. Com isso ele se torna a vítima sacrificial, o bode
expiatório num grotesco ritual simulado.
Cristo
adverte-nos que esse sacrifício é inútil, desnecessário e pecaminoso. Não
existe no mundo um poder ou autoridade habilitado a exigir vítimas. Deus Pai só
exigiu uma, e Ele mesmo a forneceu. Quem quer que, depois disso, se sinta
culpado, não deve se oferecer como vítima sacrificial perante altar nenhum.
Deve apenas recordar-se do sacrifício de Cristo e alegrar-se. Isso é
tudo.
Muitas
pessoas até sabem que as coisas são assim, mas entendem isso somente do ponto
de vista religioso formal, sem tirar desse conhecimento as conseqüências
práticas de ordem psicológica, que são portentosas:
Aquele
que se ofereceu para ser sacrificado em nosso lugar não é um cobrador de
dívidas nem um acusador, mas um salvador. Ele nada pede, apenas oferece. E em
troca aceita uma palavrinha, um sorriso, uma intenção inexpressa, qualquer
coisa, pois não é irritadiço nem orgulhoso: é manso e humilde.
Se,
sabendo disso, você ainda é vulnerável aos olhares acusadores e às palavras
venenosas, se ainda sente ante os intrigantes e os maldosos um pouco de temor
reverencial e tenta aplacá-los com mostras de submissão para que eles não o
exponham à vergonha ou não o castiguem de algum outro modo, é porque ainda não
compreendeu o sentido do Natal.
Esse
sentido é simples e direto: os maus e intrigantes não têm mais nenhuma
autoridade sobre você. Não baixe a cabeça perante eles, não consinta que suas
fraquezas sejam exploradas pela malícia do mundo.
Discurso de Bento XVI à Cúria Romana na apresentação de votos de boas-festas de Natal.
CIDADE DO VATICANO, sexta-feira, 21 de dezembro de 2012
Senhores Cardeais,
Venerados Irmãos no Episcopado e no Presbiterado,
Queridos irmãos e irmãs!
Com grande alegria, me encontro hoje convosco, [...] para este momento
tradicional antes do Natal. [...] Encontramo-nos no fim de mais um ano, também
este caracterizado – na Igreja e no mundo – por muitas situações atribuladas,
por grandes problemas e desafios, mas também por sinais de esperança. [...] Todas
estas ocasiões permitiram tocar temas fundamentais do momento presente da nossa
história [...] De todas estas grandes temáticas, quero refletir um pouco mais
detalhadamente sobre o tema da família e sobre a natureza do diálogo,
acrescentando ainda uma breve consideração sobre o tema da Nova Evangelização.
A grande alegria, com que se encontraram em Milão
famílias vindas de todo o mundo, mostrou que a família, não obstante
as múltiplas impressões em contrário, está forte e viva também hoje; mas é
incontestável – especialmente no mundo ocidental – a crise que a ameaça até nas
suas próprias bases. Impressionou-me que se tenha repetidamente sublinhado,
no Sínodo,
a importância da família para a
transmissão da fé como lugar autêntico onde se transmitem as formas
fundamentais de ser pessoa humana. É vivendo-as e sofrendo-as, juntos, que
as mesmas se aprendem. Assim se tornou evidente que, na questão da família, não está em jogo meramente uma determinada forma
social, mas o próprio homem: está em questão o que é o homem e o que é
preciso fazer para ser justamente homem. Os desafios, neste contexto, são
complexos. Há, antes de mais nada, a
questão da capacidade que o homem tem de se vincular ou então da sua falta de
vínculos. Pode o homem vincular-se para toda a vida? Isto está de acordo com a
sua natureza? Ou não estará porventura em contraste com a sua liberdade e
com a auto-realização em toda a sua amplitude? Será que o ser humano se
torna-se ele próprio, permanecendo autónomo e entrando em contacto com o outro
apenas através de relações que pode interromper a qualquer momento? Um vínculo
por toda a vida está em contraste com a liberdade? Vale a pena também sofrer
por um vínculo? A recusa do vínculo
humano, que se vai generalizando cada vez mais por causa duma noção errada de
liberdade e de auto-realização e ainda devido à fuga da perspectiva duma
paciente suportação do sofrimento, significa que o homem permanece fechado em
si mesmo e, em última análise, conserva o próprio «eu» para si mesmo, não o
supera verdadeiramente.Mas, só no
dom de si é que o homem se alcança a si mesmo, e só abrindo-se ao outro, aos
outros, aos filhos, à família, só deixando-se plasmar pelo sofrimento é que ele
descobre a grandeza de ser pessoa humana. Com a recusa de tal vínculo,
desaparecem também as figuras fundamentais da existência humana: o pai, a mãe,
o filho; caem dimensões essenciais da experiência de ser pessoa humana.
Num tratado cuidadosamente documentado e profundamente comovente, o
rabino-chefe de França, Gilles Bernheim, mostrou que o ataque à forma autêntica
da família (constituída por pai, mãe e filho), ao qual nos encontramos hoje
expostos – um verdadeiro atentado –, atinge uma dimensão ainda mais profunda. Se
antes tínhamos visto como causa da crise da família um mal-entendido acerca da
essência da liberdade humana, agora torna-se claro que aqui está em jogo a visão do próprio ser, do que significa realmente
ser homem. Ele cita o célebre aforismo de Simone de Beauvoir: «Não se nasce
mulher; fazem-na mulher – On ne naît pas femme, on le devient».
Nestas palavras, manifesta-se o fundamento daquilo que hoje, sob o vocábulo «gender
- género», é apresentado como nova filosofia da sexualidade. De acordo
com tal filosofia, o sexo já não é um
dado originário da natureza que o homem deve aceitar e preencher pessoalmente
de significado, mas uma função social que cada qual decide autonomamente,
enquanto até agora era a sociedade quem a decidia. Salta aos olhos a
profunda falsidade desta teoria e da revolução
antropológica que lhe está subjacente. O homem contesta o facto de possuir
uma natureza pré-constituída pela sua corporeidade, que caracteriza o ser
humano. Nega a sua própria natureza, decidindo que esta não lhe é dada como um
facto pré-constituído, mas é ele próprio quem a cria. De acordo com a narração
bíblica da criação, pertence à essência da criatura humana ter sido criada por
Deus como homem ou como mulher. Esta dualidade é essencial para o ser humano,
como Deus o fez. É precisamente esta dualidade como ponto de partida que é
contestada. Deixou de ser válido aquilo que se lê na narração da criação: «Ele
os criou homem e mulher» (Gn 1, 27). Isto deixou de ser válido,
para valer que não foi Ele que os criou homem e mulher; mas teria sido a
sociedade a determiná-lo até agora, ao passo que agora somos nós mesmos a
decidir sobre isto. Homem e mulher como realidade da criação, como natureza da
pessoa humana, já não existem. O homem
contesta a sua própria natureza; agora, é só espírito e vontade. A manipulação
da natureza, que hoje deploramos relativamente ao meio ambiente, torna-se aqui
a escolha básica do homem a respeito de si mesmo. Agora existe apenas o homem
em abstracto, que em seguida escolhe para si, autonomamente, qualquer coisa
como sua natureza. Homem e mulher são contestados como exigência, ditada pela
criação, de haver formas da pessoa humana que se completam mutuamente. Se,
porém, não há a dualidade de homem e mulher como um dado da criação, então
deixa de existir também a família como realidade pré-estabelecida pela criação.
Mas, em tal caso, também a prole perdeu o lugar que até agora lhe competia, e a
dignidade particular que lhe é própria; Bernheim mostra como o filho, de
sujeito jurídico que era com direito próprio, passe agora necessariamente a
objecto, ao qual se tem direito e que, como objecto de um direito, se pode
adquirir. Onde a liberdade do fazer se torna liberdade de fazer-se por si
mesmo, chega-se necessariamente a negar o próprio Criador; e, consequentemente,
o próprio homem como criatura de Deus, como imagem de Deus, é degradado na
essência do seu ser. Na luta pela família, está em jogo o próprio homem. E
torna-se evidente que, onde Deus é negado, dissolve-se também a dignidade do
homem. Quem defende Deus, defende o homem.
Dito isto, gostava de chegar ao segundo grande tema que, desde Assis até
ao Sínodo sobre
a Nova Evangelização, permeou todo o ano que chega ao fim: a questão do diálogo e do anúncio.
Comecemos pelo diálogo. No nosso tempo, para a Igreja, vejo principalmente três campos de diálogo, onde ela deve estar
presente lutando pelo homem e pelo que significa ser pessoa humana: o diálogo
com os Estados, o diálogo com a sociedade – aqui está incluído o diálogo com as
culturas e com a ciência – e, finalmente, o diálogo com as religiões. Em
todos estes diálogos, a Igreja fala a partir da luz que a fé lhe dá. Ao mesmo
tempo, porém, ela encarna a memória da humanidade que, desde os primórdios e
através dos tempos, é memória das experiências e dos sofrimentos da humanidade,
onde a Igreja aprendeu o que significa ser homem, experimentando o seu limite e
grandeza, as suas possibilidades e limitações. A cultura do humano, de que ela se faz garante, nasceu e desenvolveu-se
a partir do encontro entre a revelação de Deus e a existência humana. A Igreja
representa a memória do que é ser homem defronte a uma civilização do
esquecimento que já só se conhece a si mesma e só reconhece o próprio critério
de medição. Mas, assim como uma pessoa sem memória perdeu a sua identidade,
assim também uma humanidade sem memória perderia a própria identidade.Aquilo que foi dado ver à Igreja, no
encontro entre revelação e experiência humana, ultrapassa sem dúvida o mero
âmbito da razão, mas não constitui um mundo particular que seria desprovido de
interesse para o não-crente. Se o homem, com o próprio pensamento entra na
reflexão e na compreensão daqueles conhecimentos, estes alargam o horizonte da
razão e isto diz respeito também àqueles que não conseguem partilhar a fé da
Igreja. No diálogo com o Estado e a sociedade, naturalmente a Igreja não tem
soluções prontas para as diversas questões. Mas, unida às outras forças
sociais, lutará pelas respostas que melhor correspondam à justa medida do ser
humano. Aquilo que ela identificou como valores fundamentais, constitutivos e
não negociáveis da existência humana, deve defendê-lo com a máxima clareza.
Deve fazer todo o possível por criar uma convicção que possa depois traduzir-se
em acção política.
Na situação actual da humanidade, o diálogo
das religiões é uma condição necessária para a paz no mundo, constituindo
por isso mesmo um dever para os cristãos bem como para as outras crenças
religiosas. Este diálogo das religiões possui diversas dimensões. Há-de ser,
antes de tudo, simplesmente um diálogo
da vida, um diálogo da acção compartilhada. Nele, não se falará dos grandes
temas da fé – se Deus é trinitário, ou como se deve entender a inspiração das
Escrituras Sagradas, etc. –, mas trata-se dos problemas concretos da
convivência e da responsabilidade comum pela sociedade, pelo Estado, pela
humanidade. Aqui é preciso aprender a aceitar o outro na sua forma de ser e
pensar de modo diverso. Para isso, é necessário fazer da responsabilidade comum
pela justiça e a paz o critério basilar do diálogo. Um diálogo, onde se trate de paz e de justiça indo mais além do que é
simplesmente pragmático, torna-se por si mesmo uma luta ética sobre a verdade e
sobre o ser humano; um diálogo sobre os valores que são pressupostos em
tudo. Assim o diálogo, ao princípio meramente prático, torna-se também uma
luta pelo justo modo de ser pessoa humana. Embora as escolhas básicas não
estejam enquanto tais em discussão, os esforços à volta duma questão concreta
tornam-se um percurso no qual ambas as partes podem encontrar purificação e
enriquecimento através da escuta do outro. Assim estes esforços podem ter o
significado também de passos comuns rumo à única verdade, sem que as escolhas
básicas sejam alteradas. Se ambas as partes se movem a partir duma hermenêutica
de justiça e de paz, a diferença básica não desaparecerá, mas crescerá uma
proximidade mais profunda entre eles.
Hoje em geral, para a essência do diálogo inter-religioso, consideram
fundamentais duas regras:
1ª) O diálogo não tem como alvo a conversão, mas a compreensão. Nisto se
distingue da evangelização, da missão.
2ª) De acordo com isso, neste diálogo, ambas as partes permanecem
deliberadamente na sua identidade própria, que, no diálogo, não põem em questão
nem para si mesmo nem para os outros.
Estas regras são justas; mas penso que assim estejam formuladas
demasiado superficialmente. Sim, o
diálogo não visa a conversão, mas uma melhor compreensão recíproca: isto é
correcto. Contudo a busca de conhecimento e compreensão sempre pretende ser
também uma aproximação da verdade. Assim, ambas as partes, aproximando-se passo
a passo da verdade, avançam e caminham para uma maior partilha, que se funda
sobre a unidade da verdade. Quanto a permanecer fiéis à própria identidade,
seria demasiado pouco se o cristão, com a sua decisão a favor da própria
identidade, interrompesse por assim dizer por vontade própria o caminho para a
verdade. Então o seu ser cristão tornar-se-ia algo de arbitrário, uma escolha
simplesmente factual. Nesse caso, evidentemente, ele não teria em conta que a
religião tem a ver com a verdade. A propósito disto, eu diria que o cristão
possui a grande confiança, mais ainda, a certeza basilar de poder
tranquilamente fazer-se ao largo no vasto mar da verdade, sem dever temer pela
sua identidade de cristão. Sem dúvida,
não somos nós que possuímos a verdade, mas é ela que nos possui a nós: Cristo,
que é a Verdade, tomou-nos pela mão e, no caminho da nossa busca apaixonada de
conhecimento, sabemos que a sua mão nos sustenta firmemente.O facto de sermos interiormente sustentados
pela mão de Cristo torna-nos simultaneamente livres e seguros. Livres:
se somos sustentados por Ele, podemos, abertamente e sem medo, entrar em
qualquer diálogo.Seguros, porque Ele não nos deixa, a não ser que
sejamos nós mesmos a desligar-nos d’Ele. Unidos a Ele, estamos na luz da
verdade.
Por último, impõe-se ainda uma breve consideração sobre o anúncio, sobre
a evangelização, de que, na sequência das propostas dos Padres Sinodais, falará
efectiva e amplamente o documento pós-sinodal. Acho que os elementos essenciais
do processo de evangelização são visíveis, de forma muito eloquente, na
narração de São João sobre a vocação de dois discípulos do Baptista, que se
tornam discípulos de Cristo (cf. Jo 1, 35-39). Antes de tudo,
há o simples acto do anúncio. João Baptista indica Jesus e diz: «Eis o Cordeiro
de Deus!» Pouco depois o evangelista vai narrar um facto parecido; agora é
André que diz a Simão, seu irmão: «Encontrámos o Messias!» (1, 41). O primeiro elemento fundamental é o anúncio
puro e simples, o kerigma, cuja força deriva da convicção interior
do arauto. Na narração dos dois discípulos, temos depois a escuta, o seguir
os passos de Jesus; um seguir que não é ainda verdadeiro seguimento, mas antes
uma santa curiosidade, um movimento de busca. Na realidade, ambos os discípulos
são pessoas à procura; pessoas que, para além do quotidiano, vivem na
expectativa de Deus: na expectativa, porque Ele está presente e, portanto,
manifestar-Se-á. E a busca, tocada pelo anúncio, torna-se concreta: querem
conhecer melhor Aquele que o Baptista designou como o Cordeiro de Deus. Depois
vem o terceiro acto que tem início com o facto de Jesus Se voltar para trás, Se
voltar para eles e lhes perguntar: «Que pretendeis?» A resposta dos dois é uma
nova pergunta que indica a abertura da sua expectativa, a disponibilidade para
cumprir novos passos. Perguntam: «Rabi, onde moras?» A resposta de Jesus –
«vinde e vereis» – é um convite para O acompanharem e, caminhando com Ele,
tornarem-se videntes.
A palavra do anúncio torna-se eficaz quando existe
no homem uma dócil disponibilidade para se aproximar de Deus, quando o homem
anda interiormente à procura e, deste modo, está a caminho rumo ao Senhor.Então, vendo a solicitude de Jesus sente-se
atingido no coração; depois o impacto com o anúncio suscita uma santa
curiosidade de conhecer Jesus mais de perto. Este ir com Ele leva ao lugar onde Jesus habita: à comunidade da
Igreja, que é o seu Corpo. Significa entrar na comunhão itinerante dos
catecúmenos, que é uma comunhão feita de aprofundamento e, ao mesmo tempo, de
vida, onde o caminhar com Jesus nos faz tornar videntes.
«Vinde e vereis». Esta palavra dirigida aos dois discípulos à procura,
Jesus dirige-a também às pessoas de hoje que estão em busca. No final
do ano, queremos pedir ao Senhor para que a Igreja, não obstante as próprias
pobrezas, se torne cada vez mais reconhecível como sua morada. Pedimos-Lhe para
que, no caminho rumo à sua casa, nos torne, também a nós, sempre mais videntes
a fim de podermos afirmar sempre melhor e de modo cada mais convincente:
encontrámos Aquele que todo o mundo espera, ou seja, Jesus Cristo, verdadeiro
Filho de Deus e verdadeiro homem. Neste espírito, desejo de coração a todos vós
um santo Natal e um feliz Ano Novo. Obrigado!
Artigo do Papa Bento XVI, para o Financial Time, edição de 20 de dezembro de 2012
"Dê a César o que é de César e a Deus o que é de Deus", foi a resposta de Jesus quando lhe foi perguntado o que pensava sobre o pagamento dos impostos. Aqueles que o interrogavam, obviamente, queriam colocá-lo numa armadilha. Queriam forçá-lo a tomar posição no debate político sobre a dominação romana na terra de Israel. E tinha ainda mais em jogo: se Jesus era realmente o Messias esperado, então certamente ele teria ficado contra os dominadores romanos. Portanto a pergunta estava pensada para desmascará-lo como uma ameaça ao regime ou como um impostor.
A resposta de Jesus leva habilmente a questão para um nível superior, colocando, com finura, em guarda seja com relação à politização da religião seja com a deificação do poder temporal, como também da incansável busca da riqueza. Os seus ouvintes deviam compreender que o Messias não era César, e que César não era Deus. O reino que Jesus vinha instaurar era de uma dimensão absolutamente superior. Como respondeu a Pôncio Pilatos: “O meu Reino não é deste mundo”.
As narrações de Natal do Novo Testamento tem o objetivo de expressar uma mensagem semelhante. Jesus nasce durante um "censo de todo o mundo", querido por César Augusto, o imperador famoso por ter levado a Pax Romana a todas as terras submetidas ao domínio romano. No entanto, esta criança, que nasceu em um canto obscuro e distante do império, estava prestes a oferecer ao mundo uma paz muito maior, verdadeiramente universal em seu propósito e transcendente de todos os limites de espaço e tempo.
Jesus nos é apresentado como o herdeiro do Rei Davi, mas a libertação que ele trouxe para o seu povo não era a de ter sob vigilância os exércitos inimigos; tratava-se, pelo contrário, de vencer para sempre o pecado e a morte.
O nascimento de Cristo nos desafia a repensar as nossas prioridades, os nossos valores, o nosso mesmo modo de vida. E enquanto o Natal é certamente um momento de grande alegria, é também uma ocasião de profunda reflexão, ou melhor, de um exame de consciência. No final de um ano que significou privações econômicas para muitos, o que podemos aprender da humildade, da pobreza, da simplicidade da cena do presépio?
O Natal pode ser o momento em que aprendemos a ler o Evangelho, a conhecer a Jesus não só como o Menino da manjedoura, mas como aquele em que nós reconhecemos o Deus feito Homem.
É no Evangelho que os cristãos encontram inspiração para a vida cotidiana e para o seu envolvimento nos assuntos do mundo - quer isso aconteça no Parlamento ou na Bolsa. Os cristãos não deveriam fugir do mundo; pelo contrário, deveriam comprometer-se com ele. Mas o seu envolvimento na política e na economia deveria transcender toda forma de ideologia.
Os cristãos combatem a pobreza porque reconhecem a dignidade suprema de todo ser humano, criado à imagem de Deus e destinado à vida eterna. Os cristãos trabalham para uma partilha equitativa dos recursos da terra porque estão convencidos de que, como administradores da criação de Deus, nós temos o dever de cuidar dos mais frágeis e dos mais vulneráveis. Os cristãos se opõem à ganância e à exploração convencidos de que a generosidade e um amor que esquece de si, ensinados e vividos por Jesus de Nazaré, são o caminho que conduz para a plenitude da vida. A fé cristã no destino transcendente de todo ser humano implica a urgência da tarefa de promover a paz e a justiça para todos. Porque tais objetivos são compartilhados por muitos, é possível uma grande e frutuosa colaboração entre os cristãos e os outros. E no entanto, os cristãos dão a César só o que é de César, mas não o que pertence a Deus. Por vezes, ao longo da história, os cristãos não puderam aceder aos pedidos feitos por César. Do culto ao imperador da Roma antiga até os regimes totalitários do século XX, César tentou tomar o lugar de Deus. Quando os cristãos se recusam a se curvar diante dos deuses falsos propostos em nossos tempos não é porque eles têm visões ultrapassadas do mundo . Pelo contrário, isso acontece porque eles são livres das amarras da ideologia e animados por uma visão tão nobre do destino humano, que não podem aceitar compromissos com nada que o possa prejudicar.
Na Itália, muitos presépios são adornados com ruínas das antigas construções romanas no fundo. Isso mostra que o nascimento do menino Jesus marca o fim da velha ordem, o mundo pagão, no qual os pedidos de César pareciam impossíveis de desafiar. Agora há um novo rei, que não confia na força das armas, mas no poder do amor. Ele traz esperança a todos aqueles que, como ele mesmo, vivem à margem da sociedade. Traz esperança para aqueles que são vulneráveis às instáveis sortes de um mundo precário. Da manjedoura, Cristo nos chama a viver como cidadãos do seu reino celestial, um reino que todas as pessoas de boa vontade podem ajudar a construir aqui na terra.