sábado, 20 de outubro de 2012

Desassossegos do homem (pós) moderno

Do Livro do Desassossego, por Bernardo Soares (Fernando Pessoa)


"[...]
Quando nasceu a geração, a que pertenço, encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro, e ao mesmo tempo coração. O trabalho destrutivo das gerações anteriores fizera que o mundo, para o qual nascemos, não tivesse segurança que nos dar na ordem religiosa, esteio que nos dar na ordem moral, tranquilidade que nos dar na ordem política. Nascemos já em plena angústia metafísica, em plena angústia moral, em pleno desassossego político. Ébrias das fórmulas externas, dos meros processos da razão e da ciência, as gerações, que nos precederam, aluíram todos os fundamentos da fé cristã, porque a sua crítica bíblica, subindo de crítica dos textos a crítica mitológica, reduziu os evangelhos e a anterior hierografia dos judeus a um amontoado incerto de mitos, de legendas e de mera literatura; e a sua crítica científica gradualmente apontou os erros, as ingenuidades selvagens da «ciência» primitiva dos evangelhos; e, ao mesmo tempo, a liberdade de discussão, que pôs em praça todos os problemas metafísicos, arrastou com eles os problemas religiosos onde fossem da metafísica. Ébrias de uma coisa incerta, a que chamaram «positividade», essas gerações criticaram toda a moral, esquadrinharam todas as regras de viver, e, de tal choque de doutrinas, só ficou a certeza nenhuma, e a dor de não haver essa certeza. Uma sociedade assim indisciplinada nos seus fundamentos culturais não podia, evidentemente ser senão vítima, na política, dessa indisciplina; e assim foi que acordámos para um mundo ávido de novidades sociais, e [que] com alegria ia à conquista de uma liberdade que não sabia o que era, de um progresso que nunca definira.
Mas o criticismo fruste dos nossos pais, se nos legou a impossibilidade de ser cristão, não nos legou o contentamento com que (...) tivéssemos; se nos legou a descrença nas fórmulas morais estabelecidas, não nos legou a indiferença à moral e às regras de viver humanamente; se deixou incerto o problema político, não deixou indiferente o nosso espírito a como esse problema se resolvesse. Nossos pais destruíram contentemente, porque viviam numa época que tinha ainda reflexos da solidez do passado. Era aquilo mesmo que eles destruíam que dava força à sociedade para que pudessem destruir sem sentir edifício rachar-se. Nós herdámos a destruição e os seus resultados.
Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade e a hiperexcitação.

Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados só da beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver.
Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos órfãos. Cada civilização segue a linha íntima de uma religião que a representa: passar para outras religiões é perder essa, e por fim perdê-las a todas.
Nós perdemos essa, e às outras também.
Ficámos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de se sentir viver. Um barco parece ser um objecto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós encontrámo-nos navegando, sem a ideia do porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é preciso.
Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuímo-nos, porque o homem completo é o homem que se ignora. Sem fé, não temos esperança, e sem esperança não temos propriamente vida. Não tendo uma ideia do futuro, também não temos uma ideia de hoje, porque o hoje, para o homem de acção, não é senão um prólogo do futuro. A energia para lutar nasceu morta connosco, porque nós nascemos sem o entusiasmo da luta.
Uns de nós estagnaram na conquista alvar do quotidiano, reles e baixos buscando o pão de cada dia, e querendo obtê-lo sem o trabalho sentido, sem a consciência do esforço, sem a nobreza do conseguimento.
Outros, de melhor estirpe, abstivemo-nos da coisa pública, nada querendo e nada desejando, e tentando levar até ao calvário do esquecimento a cruz de simplesmente existirmos. Impossível esforço, em que[m] não tem, como o portador da Cruz, uma origem divina na consciência.
Outros entregaram-se, atarefados por fora da alma, ao culto da confusão e do ruído, julgando viver quando se ouviam, crendo amar quando chocavam contra as exterioridades do amor. Viver doía-nos, porque sabíamos que estávamos vivos; morrer não nos aterrava porque tínhamos perdido a noção normal da morte.
Mas outros, Raça do Fim, limite espiritual da Hora Morta, nem tiveram a coragem da negação e do asilo em si próprios. O que vivemos foi em negação, em descontentamento e em desconsolo. Mas vivemo-lo de dentro, sem gestos, fechados sempre, pelo menos no género de vida, entre as quatro paredes do quarto e os quatro muros de não saber agir.
[...]"

1ª Catequese do Ano da Fé - Papa Bento XVI


CIDADE DO VATICANO

Audiência Geral de quarta-feira

17 de outubro de 2012 


Queridos irmãos e irmãs,

Hoje vou apresentar o novo ciclo de catequese, que se desenvolve durante todo o Ano de Fé  inaugurado recentemente  e que interrompe - por este período - o ciclo dedicado à escola de oração. Com a Carta Apostólica Porta Fidei convoquei este Ano especial,  para que a Igreja renove o entusiasmo de crerem Jesus Cristo, o único salvador do mundo, reaviva a alegria de andar no caminho que nos indicou, e testemunhe de maneira concreta a força transformadora da fé.
A ocorrência dos cinqüenta anos da abertura do Concílio Vaticano II é uma importante ocasião para retornar a Deus, para aprofundar e viver com maior coragem a própria fé, para fortalecer a pertença à Igreja, "mestra de humanidade", que, através do anúncio da Palavra, a celebração dos Sacramentos e obras de caridade nos leva a encontrar e conhecer a Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Este não é o encontro com uma idéia ou um projeto de vida, mas com uma Pessoa viva que transforma profundamente a nós mesmos, revelando a nossa verdadeira identidade de filhos de Deus. O encontro com Cristo renova nossas relações humanas, orientando-as, dia a dia, a uma maior solidariedade e fraternidade, na lógica do amor. Ter fé no Senhor não é algo que interessa apenas à nossa inteligência, a área do saber intelectual, mas é uma mudança que envolve a vida, todo o nosso ser: sentimento, coração, inteligência,  vontade, corporeidade, emoções, relacionamentos. Com a fé realmente tudo muda em nós e para nós, e revela com clareza o nosso destino futuro, a verdade da nossa vocação na história, o sentido da vida, o gosto de ser um peregrino em direção à Pátria celestial.
Mas – perguntamo-nos - a fé é realmente o poder transformador em nossas vidas, em minha vida? Ou é apenas um dos elementos que fazem parte da existência, sem ser aquele determinante que a envolve totalmente?
Com as catequeses deste Ano da Fé gostaríamos de percorrer um caminho para fortalecer ou reencontrar a alegria da fé, compreendendo que essa não é algo estranho, destacado da vida cotidiana, mas é a alma. A fé em um Deus que é amor, e que se fez próximo ao homem encarnando-se e entregando-se na cruz para nos salvar e reabrir as portas do Céu, de modo luminoso que somente no amor está a plenitude do homem. Hoje é necessário repetir isso claramente, enquanto as transformações culturais em curso muitas vezes mostram diversas formas de barbárie, que passam sob símbolo de "conquistas de civilização": a fé afirma que não há verdadeira humanidade senão nos lugares, gestos, tempos e formas em que o homem é motivado pelo amor que vem de Deus, exprimi-se como dom, se manifesta nas relações plenas de amor, compaixão, atenção e serviço desinteressado para com o outro. Onde há dominação, posse, exploração, mercantilização do outro por egoísmo próprio, onde há arrogância do eu fechado em si mesmo, o homem é empobrecido, degradado, desfigurado. A fé cristã, operante na caridade e forte na esperança, não limita, mas humaniza a vida, de fato torna-a plenamente humana.
A fé é acolher esta mensagem transformadora em nossa vida, é acolher a revelação de Deus, que nos faz conhecer quem Ele é, como age, quais são seus planos para nós. É claro, o mistério de Deus está sempre além dos nossos conceitos e da nossa razão, dos nossos ritos e orações. No entanto, com a revelação o próprio Deus se autocomunica, se diz, torna-se acessível. E nós somos capazes de escutar a Sua Palavra e de receber a sua verdade. Eis então, a maravilha da fé: Deus, no seu amor, cria em nós - através da obra do Espírito Santo - as condições adequadas para que possamos reconhecer a sua Palavra. Deus mesmo, na sua vontade de se manifestar, de entrar em contato conosco, de estar presente em nossa história, nos permite ouvi-lo e acolhê-lo. São Paulo exprime isso com alegria e gratidão: "Por isso é que também nós não cessamos de dar graças a Deus, porque recebestes a palavra de Deus, que de nós ouvistes, e a acolhestes, não como palavra de homens, mas como aquilo que realmente é, como palavra de Deus, que age eficazmente em vós, os fiéis" (1 Tessalonicenses 2,13).
Deus revelou-se em palavras e obras ao longo de uma história de amizade com o homem, que culmina na Encarnação do Filho de Deus e no seu mistério de morte e ressurreição. Deus não apenas se revelou na história de um povo, não só falou através dos Profetas, mas atravessou seu Céu para entrar na terra dos homens como homem, para que pudéssemos encontrá-lo e ouvi-lo. E de Jerusalém o anúncio do Evangelho da salvação se difundiu até os confins da terra. A Igreja, nascida do lado aberto de Cristo, tornou-se portadora de uma nova sólida esperança: Jesus de Nazaré, crucificado e ressuscitado, salvador do mundo, que está sentado à direita do Pai e é o juiz dos vivos e dos mortos. Este é o Kerigma, o anúncio central e disruptivo da fé. Mas desde o início, surgiu o problema da "regra de fé", ou seja, a fidelidade dos crentes à verdade do Evangelho, na qual continuam fortes, à verdade salvadora sobre Deus e sobre o homem a ser preservada e transmitida. São Paulo escreve: "Sereis salvos, se o conservardes [o evangelho] como vo-lo anunciei. Caso contrário, vós teríeis acreditado em vão” (1 Cor 15,2)
Mas onde encontramos a fórmula essencial da fé? Onde encontramos a verdade que nos foi transmitida fielmente e que é luz para a nossa vida cotidiana? A resposta é simples: no Credo, na Profissão de Fé o Símbolo da fé, nós nos reportamos ao evento originário da Pessoa e da História de Jesus de Nazaré; torna-se concreto aquilo que o Apóstolo dos gentios dizia aos cristãos de Corinto: “Vos transmiti, antes de tudo, aquilo que eu também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados segundo as Escrituras, foi sepultado e ressurgiu ao terceiro dia” (1 Cor 15,3).
Também hoje precisamos que o Credo seja conhecido melhor, compreendido e rezado. Sobretudo é importante que o Credo seja, por assim dizer, “reconhecido”. Conhecer, de fato, poderia ser uma operação apenas intelectual, enquanto “reconhecer” quer dizer a necessidade de descobrir a ligação profunda entre a verdade que professamos no Credo e a nossa existência cotidiana, para que estas verdades sejam verdadeiramente e concretamente – como sempre foi – luz para os passos do nosso viver, água que irriga o calor do nosso caminho, vida que vence certos desertos da vida contemporânea.  No Credo se engaja a vida moral do cristão, que nesse encontra o seu fundamento e a sua justificativa. 
Não é por acaso que o Beato João Paulo II quis que o Catecismo da Igreja Católica, norma segura para o ensinamento da fé e fonte certa para uma catequese renovada, fosse estabelecido no Credo. Tratou-se de confirmar e guardar este núcleo central da verdade da fé, tornando-o uma linguagem mais compreensível aos homens do nosso tempo, a nós. É um dever da Igreja transmitir a fé, comunicar o Evangelho, a fim de que a verdade cristã seja luz nas novas transformações culturais, e os cristãos sejam capazes de dar razões da esperança que portam (cfr 1 Pt3,14). Hoje vivemos em uma sociedade profundamente alterada mesmo em relação a um passado recente, e em contínuo movimento. Os processos da secularização e de uma difundida mentalidade niilista, em que tudo é relativo, marcaram fortemente a mentalidade comum. Assim, a vida é vivida muitas vezes com leveza, sem ideais claros e esperanças sólidas, dentro das ligações sociais e familiares líquidas, provisóriasSobretudo as novas gerações não são educadas para a busca da verdade e do sentido profundo da existência que supera o contingente, para a estabilidade dos afetos, para a confiança. Ao contrário, o relativismo leva a não ter pontos fixos, suspeita e volatilidade causam rupturas nas relações humanas, enquanto a vida é vivida dentro de experiências que duram pouco, sem assumir responsabilidades. Se o individualismo e o relativismo parecem dominar a alma de muitos contemporâneos, não se pode dizer que os que crêem estão totalmente imunes a este perigo, com o qual somos confrontados na transmissão da fé. A pesquisa promovida em todos os continentes para a celebração do Sínodo dos Bispos sobre a Nova Evangelização, evidenciou alguns: uma fé vivida de modo passivo e privado, a recusa da educação na fé, o rompimento entre a vida e a fé
O cristão muitas vezes não conhece nem sequer o núcleo central da própria fé católica, do Credo, de modo a deixar espaço a um certo sincretismo e relativismo religioso, sem clareza sobre a verdade de crer e da singularidade salvífica do cristianismo. Não está tão longe hoje o risco de construir, por assim dizer, uma religião “faça você mesmo”. Devemos, em vez disso, voltar para Deus, ao Deus de Jesus Cristo, devemos redescobrir a mensagem do Evangelho, fazê-lo entrar de modo mais profundo nas nossas consciências e na vida cotidiana. 
Nas catequeses deste Ano da Fé gostaria de oferecer uma ajuda para percorrer este caminho, para retomar e aprofundar a verdade central da fé em Deus, no homem, na Igreja, em toda a realidade social e cósmica, meditando e refletindo sobre as afirmações do Credo. E gostaria que ficasse claro que este conteúdo ou verdade da fé (fides quae) se conecta diretamente às nossas vidas; pede uma conversão da existência, que dá vida a um novo modo de crer em Deus (fides qua). Conhecer Deus, encontrá-Lo, aprofundar o conhecimento de sua face põe em jogo a nossa vida, porque Ele entra nos dinamismos profundos do ser humano.
Possa o caminho que iremos percorrer neste ano fazer-nos crescer todos na fé e no amor a Cristo, para que aprendamos a viver, nas escolhas e nas ações cotidianas, a vida boa e bela do Evangelho. Obrigado. 
(Trad.MEM) Fonte: Zenit.org

sábado, 6 de outubro de 2012

A Família em busca da extinção

Diário do Comércio, 02 Outubro 2012

Por Olavo de Carvalho

A “família tradicional” que os cristãos e conservadores defendem ardorosamente contra o assédio feminista, gayzista, pansexualista etc., bem como contra a usurpação do pátrio poder pelo Estado, é essencialmente a família nuclear constituída de pai, mãe e filhos (poucos). O cinema consagrou essa imagem como símbolo vivente dos valores fundamentais da cultura americana, e a transmitiu a todos os países da órbita cultural dos EUA.

Mas esse modelo de família nada tem de tradicional. É um subproduto da Revolução Industrial e da Revolução Francesa. A primeira desmantelou as culturas regionais e as unidades de trabalho familiar em que habilidades agrícolas ou artesanais se transmitiam de pai a filho ao longo das gerações; as famílias tradicionais desmembraram-se em pequenas unidades desarraigadas, que vieram para as cidades em busca de emprego. A Revolução Francesa completou o serviço, abolindo os laços tradicionais de lealdade territorial, familiar, pessoal e grupal e instaurando em lugar deles um novo sistema de liames legais e burocráticos em que a obrigação de cada indivíduo vai para o Estado em primeiro lugar e só secundariamente – por permissão do Estado – a seus familiares e amigos. A sociedade “natural”, formada ao longo dos séculos sem nenhum planejamento, por experiência e erro, foi enfim substituída pela sociedade planejada, racional-burocrática, em que os átomos humanos, amputados de qualquer ligação profunda de ordem pessoal e orgânica, só têm uns com os outros relações mecânicas fundadas nos regulamentos do Estado ou afinidades de superfície nascidas de encontros casuais nos ambientes de trabalho e lazer. Tal é a base e origem da moderna família nuclear.

Max Weber descreve esse processo como um capítulo essencial do “desencantamento do mundo”, em que a perda de um sentido maior da existência é mal compensada por sucedâneos ideológicos, pela indústria das diversões públicas e por uma “religião” cada vez mais despojada da sua função essencial de moldar a cultura como um todo. Nessas condições, assinala Weber, é natural que a busca de uma ligação com o sentido profundo da existência reflua para a intimidade de ambientes cada vez mais restritos, entre os quais, evidentemente, a família nuclear. Mas, na medida mesma em que esta é uma entidade jurídica altamente regulamentada e cada vez mais exposta às intrusões da autoridade estatal, ela deixa de ser aos poucos o abrigo ideal da intimidade e é substituída, nessa função, pelas relações extramatrimoniais.

Separada da proteção patriarcal, solta no espaço, dependente inteiramente da burocracia estatal que a esmaga, a família nuclear moderna é por sua estrutura mesma uma entidade muito frágil, incapaz de resistir ao impacto das mudanças sociais aceleradas e a cada “crise de gerações” que as acompanha necessariamente. Longe de ser a morada dos valores tradicionais, ela é uma etapa de um processo histórico-social abrangente que vai em direção à total erradicação da autoridade familiar e à sua substituição pelo poder impessoal da burocracia.

Não por coincidência, o esfarelamento da sociedade em unidades familiares pequenas permanentemente ameaçadas de autodestruição veio acompanhada do fortalecimento inaudito de umas poucas famílias patriarcais, justamente aquelas que estavam e estão na liderança do mesmo processo. Refiro-me às dinastias nobiliárquicas e financeiras que hoje constituem o núcleo da elite globalista. Quanto mais uma “ciência social” subsidiada por essas grandes fortunas persuade a população de que a dissolução do patriarcalismo foi um grande progresso da liberdade e dos direitos humanos, mais fortemente a elite mandante se apega à continuidade patriarcalista que garante a perpetuação e ampliação do seu poder ao longo das gerações. Com toda a evidência, a família patriarcal é uma fonte de poder: a história social dos dois últimos séculos é a da transformação do poder patriarcal num privilégio dos muito ricos, negado simultaneamente a milhões de bocós cujos filhos aprendem, na universidade, a festejar o fim do patriarcado como o advento de uma era de liberdade quase paradisíaca. O desenvolvimento inevitável desse processo é a destruição – ou autodestruição -- das próprias famílias nucleares, ou do que delas reste após cada nova “crise de gerações”.

A “defesa da família” torna-se, nesse contexto, a defesa de uma entidade abstrata cujo correspondente no mundo concreto só veio à existência com a finalidade de extinguir-se. A ameaça feminista, gayzista ou pansexualista existe, mas só se torna temível graças à fragilidade intrínseca da entidade contra a qual se volta.

Ou as famílias se agrupam em unidades maiores fundadas em laços pessoais profundos e duradouros, ou sua erradicação é apenas questão de tempo. As comunidades religiosas funcionam às vezes como abrigos temporários onde as famílias encontram proteção e solidariedade. Mas essas comunidades baseiam-se numa uniformidade moral estrita, que exclui os divergentes, motivo pelo qual se tornam vítimas fáceis da drenagem de fiéis pela “crise de gerações”. A família patriarcal não é uma unidade ético-dogmática: é uma unidade biológica e funcional forjada em torno de interesses objetivos permanentes, onde os maus e desajustados sempre acabam sendo aproveitados em alguma função útil ao conjunto.

Em últimas contas, se o patriarcalismo fosse coisa ruim os ricos não o guardariam ciumentamente para si mesmos, mas o distribuiriam aos pobres, preferindo, por seu lado, esfarelar-se em pequenas famílias nucleares. Se fazem precisamente o oposto, é porque sabem o que estão fazendo.