sexta-feira, 29 de junho de 2012

Os crucifixos nos Tribunais de Justiça



Não existe atitude religiosa neutra. No ateísmo existe sim atitude religiosa, que não é a atitude religiosa do povo brasileiro. A retirada de símbolos religiosos criaria uma religião oficial no país: a irreligiosidade atéia. Se existe uma elite intelectual atéia no Brasil, ela deveria considerar que o povo brasileiro do qual vem o poder que os constitui como autoridade não é ateu e deve ser respeitado.

O Estado não tem religião, mas tem um povo a que deve servir. Foi o patrimônio moral do povo brasileiro, um patrimônio cristão e, mais especificamente, católico que gerou os textos legislativos que são interpretados e aplicados pelos tribunais de justiça. Não é possível dizermos que os textos legislativos do nosso país são totalmente isentos de valores morais. Os valores morais que estão lá e que são a chave interpretativa destes textos são valores cristãos.

Um crucifixo na parede de um tribunal é muito mais do que um símbolo religioso, é um símbolo civilizacional. É uma realidade que deve ser reconhecida, independentemente da religião daquele que julga. O magistrado, embora tenha todo o direito de professar qualquer outra religião, não tem o direito de interpretar as leis do país fora do aspecto cultural e da moralidade nas quais eles foram exarados. Senão de nada adiantará defender princípios constitucionais, porque toda lei se tornará um “nariz de cera” que pode ser movido pelo magistrado para onde ele quiser.

O judiciário brasileiro, com o seu ativismo, está caminhando para um abismo que nos levará para a ditadura. Quando juízes acham que podem interpretar as leis conforme a sua imaginação e não conforme o espírito em que estas leis foram escritas, nós estamos diante de déspotas, malfeitores e não servidores da lei. Porque um magistrado sem princípios éticos e morais, somente com militância e fidelidade a ideologias é um malfeitor, um instrumento de injustiça e não um servidor da justiça.

Bem-aventurada Maria Restituta Kafka, rogai por nós!

terça-feira, 26 de junho de 2012

Tirando as fraudas

Sempre libertador descobrir que não se chora, nem se ri, sozinho. A ventura humana, embora singular e única, não é original o bastante a ponto de trancafiar num quarto sem portas nem janelas algum sujeito mais desavisado. Mais que descobrir, relembrar que existe por cima de tudo uma grande tradição é muito consolador. E ao longo da vida vamos esquecendo e relembrando este fato e nos libertando de nossas próprias prisões. Quando o velho espírito consolador nos sopra ao ouvido, finalmente, a sua sabedoria, e em êxtase nos purificamos à lembrança de que tantos outros homens já choraram e já riram os nossos mesmos tormentos e alegrias. Na multidão de vozes que na agonia nos assaltam (medos, preconceitos, afetações, complexos, neuroses, o falatório social, nosso teatro mental...), vamos depurando, escolhendo dedo a dedo, até encontrar aquela única verdadeira, a que nos faz verdadeiramente homens. A ela recorremos, confiantes e sem medo, para que nos acuse, defenda e julgue, sabendo que, condenados ou absolvidos, estaremos mais livres depois (pois quanto mais sinceros, maior o perdão). Consciência é o seu nome, a casa de Deus em nós. Ordeira e silenciosa, encontra-se, muitas vezes, embaralhada e dispersa em nossa bagunça existencial. Com empenho, vamos limpando tudo, enchendo prateleiras, jogando fora o que não nos serve mais (alguma vez serviu?). Revisitamos a memória, paramos horas, dias, anos em pedaços difíceis de atravessar. Choramos a contra gosto, chegamos a desesperar. A matéria é dura, o caminho pedregoso, cheio de desertos e mangues lamacentos. A aventura é hostil. Às vezes, demoramos bastante para encontrar a saída. Por isso, é preciso guardar em lugar seguro a fé de que dentro de nós mora esta casa incorrupta que nos salvará. Também é preciso aprender a rir de si mesmo, a não se levar a sério demais (cedo ou tarde, descobrimos que poucas coisas merecem ser levadas a sério, o resto só torna a bagagem mais pesada e a caminhada mais cansativa). Aprender a desconfiar, por princípio, dos próprios juízos e a não ter vergonha de perceber que sim, é verdade, não somos tão bons quanto pensamos (nem tão maus) e existem muitos por aí bem melhores (e bem piores) que nós (e não falo apenas dos mais velhos ou dos que já morreram). Aliás, podemos errar e errar feio, mas, em contrapartida, nem tudo dependerá de nós para ser corrigido. Embora tenhamos alguns bons amigos, há o sério risco de sermos condescendentes com nossos inimigos e acabarmos tragados em alguma tocaia (lembrando que nossos piores inimigos são os que estão dentro de nós, pelo motivo óbvio de que, bem camuflados, muitas vezes os tomamos como fiéis confidentes). De resto, é preciso uma boa dose de paciência, no tempo e na dor, e coragem, na verdade e no enfrentamento. Acostumamos-nos, pela experiência, pouco a pouco vamos calejando, sem embrutecer. “Vigiai e orai”, nos diz, em síntese, aquele consolador (no fundo, no fundo, tudo o que fazemos é sempre desdobrar e reconhecer a mesma sabedoria de sempre).  

sexta-feira, 22 de junho de 2012

"Se você QUISER, você vai conseguir fazer" (Olavo de Carvalho)

É preciso perder as ilusões sobre esta vida. Se você não entende que a sua alma é imortal, que esta vida é apenas um rascunho, como dizia Bruno Tolentino, as vantagens que o mundo oferece serão muito importantes e você vai perder força.

A Igreja diz o seguinte: A alma tem três inimigos, o mundo, o diabo e a carne. A carne é a tendência que o ser humano tem de pensar que todos os estímulos sensoriais que o afetam são a realidade mesma. Em outras palavras, a pessoa toma como definição de realidade apenas o que é corporal e sensível. Este é o primeiro engano. Em segundo lugar vem o diabo. Ele é o tentador e acusador. É aquele que o induz a praticar o mal e depois coloca dentro da sua cabeça, não o arrependimento verdadeiro, não o arrependimento que cura, mas o remorso. Remorso quer dizer remorder. É viver remordendo-se a si mesmo, acusando-se, ficando mais angustiado e fazendo mais merda ainda. E o mundo é o mundo do falatório. É a sociedade humana que vive oferecendo vantagens e um futuro promissor, mas que jamais trará a satisfação desejada.

Se você não cair nesses três engodos, o mundo, o diabo e a carne, então estará preparado para essa luta. Quando falo isso, não estou querendo dizer que você tem de ser santinho. É apenas uma questão de você não se deixar enganar pelo que você mesmo está fazendo. Se você não tem o sentido de servir a alguma coisa que é infinitamente maior do que você mesmo. Se você não estiver preparado para perder a vida nessa luta, se você quer um bom emprego, uma renda segura, comer não sei quantas mulheres, é melhor desistir.

Mas se quiser encarar corajosamente essa missão, cumpra o seu dever e as coisas do mundo que vierem de graça, serão motivo de alegria. Mas se tiver de largá-las, faça isso de bom grado. Aceite os benefícios sem temor e desfaça-se deles sem tristeza, nem remorso. Dê graças a Deus nos dois casos. A sua vida no final das contas não será tão ruim assim. Em todo o trabalho que estou desenvolvendo, perdi algumas coisas, mas ganhei mais. Não se impressione muito. O que é necessário para isso não são qualidades humanas especiais. Existe somente uma coisa que é preciso para cumprir essa missão e esta coisa chama-se QUERER. Se você QUISER, você vai conseguir fazer.

(trecho do programa True Outspeak de 28/12/2011)

"Isto é a prática de tornar-se gente" (Olavo de Carvalho)


Eu passei pelo menos vinte anos da minha vida desmontando e remontando a minha personalidade não no sentido de adquirir uma santidade ou uma perfeição evangélica, mas de adquirir aquele mínimo de integração sem o qual você não é você mesmo, sem o qual você é um nada. Note que o advento do cristianismo aconteceu não num lugar qualquer, numa Zâmbia ou numa tribo da América do sul. Aconteceu na civilização mais ordenada e integrada que você tinha na época que era o Império Romano. O império Romano não era um primor de perfeições morais, mas era sim um primor de integração, de ordem e, portanto, de consciência. A informação circulava dentro do Império Romano, as partes conheciam o todo e o todo conhecia as partes. Esta integração da personalidade, então, precede a conquista de quaisquer virtudes morais.

Porque qualquer virtude moral colada numa personalidade fragmentada não significa absolutamente nada. Quer dizer, o sujeito está crente de que está agindo de uma maneira virtuosa e está fazendo uma baita sacanagem e não percebe, não tem autoconsciência suficiente para se perceber e se julgar a si mesmo. Então vira tudo um teatro. Não são virtudes verdadeiras. Quando Deus enviou Jesus Cristo no Império Romano e não em outro lugar, existe ai uma mensagem formidável, a que todos nós temos que aprender. Existe certo mínimo de virtude natural que você tem que ter antes de você receber o influxo do espírito.

Assim como no ato da criação Deus constituiu o homem com o barro, não com merda, não com sujeira, mas como barro limpo. Deste barro limpo ele faz o homem e daí ele insufla no homem o espírito. Não é qualquer coisa que pode receber o espírito. O barro em si mesmo não tem nada de sacro santo, é apenas uma coisa da natureza, mas ele tem que estar limpo. Do mesmo modo a personalidade tem que ter uma integração, um ordem interna, na qual o sujeito quando diz a palavra “eu” ele diz com plena consciência do que está dizendo. Ele se conhece como autor de seus atos, autor de seus pensamentos, senhor de seus estados interiores e responsável por tudo que se passa na alma dele.

[...] (Neste sentido) o sacramento da confissão não vale nada se você não tem certa integração pessoal, em que você seja capaz de perceber e julgar os seus próprios atos. Existe a inspiração do espírito santo, que tem uma função sobrenatural, mas também uma função usual, que é inspirar a sua inteligência para que você descubra a verdade. Não a verdade sobre as grandes coisas, mas a verdade sobre a sua própria conduta, sobre as suas próprias motivações interiores, seus sentimentos profundos, suas intenções. [...] Eu passei mais de vinte anos observando as minhas más intenções e até hoje eu tenho que prestar muita atenção em mim mesmo para eu não fazer uma grossa sacanagem.

[...] Nosso curso de filosofia começou com a prática de você conhecer a si mesmo, conhecer as suas motivações e de você ter um padrão para você se julgar. Lembro o exercício do necrológico, que é a régua para você medir quem você está sendo no momento. Se você sabe quem você quer ser, você sabe se você está se aproximando ou se afastando. Às vezes, as forças que nos afastam do nosso ideal moral são tão tremendas que você precisa de anos, anos, anos para você conseguir achar uma brecha pela qual você retoma o caminho.

[...] Ser sincero não é simplesmente dizer o que você pensa na hora. Isto é simplesmente desempenhar o papel que naquele momento você se atribui no seu teatro mental. Isto não é sinceridade. Sinceridade é você confrontar os seus vários pensamentos e emoções diferentes, toda a sua tensão interior e você ter que arbitrar isto tudo. Por isso é que o grande psiquiatra... chamava o ser humano de o “construtor de pontes”. Todos nós temos uma gama inteira, um leque inteiro de impulsos contraditórios e nós temos que arbitrar entre eles, harmonizar, combinar etc. Isto é a prática de tornar-se gente. 

(trecho do programa "true outspeak")

sábado, 16 de junho de 2012

Ditado

Simplesmente precisava parar aqui. Faz muito tempo que não escrevo. Tenho estranhado o mundo a minha volta, sinto meu coração seqüestrado. Ouço o murmúrio de meus amigos, que ressoa dentro de mim como uma voz melodiosa, quase uma prece. Nutro esperanças, brigo, corro, não desisto. Mas esta sensação de encolhimento, este desarranjo de tudo ao redor... Serei feliz? Tenho muitos sonhos, tanta juventude, tanta vontade de abraçar a vida... Contar minhas histórias, aprender a tocar piano, visitar a Itália, encontrar o trabalho que seja minha vocação. Descobrir, numa multidão de olhares, o olhar doce e companheiro da mulher que hei de amar e desejar. Os nossos risos, o jeito dela, as suas mãos. O nosso entendimento. As coisas nossas, só nossas. Nossa intimidade e devaneios. A sua maternidade e o modo como ela me faz um rei. Um rei bobo, de nossos filhos, debaixo do teto em que vivemos. Naquela casa que já construí, no jardim que inventei e que é o lugar mais bonito do mundo. Com caminhos de pedras e jabuticabeiras. Serei feliz? Às vezes acho que preciso resistir, resistir enormemente. Mas não quero negar nada, nem enegrecer os meus dias numa batalha injusta. Terei mesmo de entregar uma parte, talvez a mais preciosa, a preço tão vil? Amo a vida, o seu cotidiano e as suas surpresas. Amo a sua luta. Sinto que a ganhei como um presente. Estarei livre o suficiente para recebê-lo?  Às vezes fico assustado, corroído pelo que vejo. Pois será simplesmente a iniqüidade de sempre que no momento certo o mundo me revela? Também é verdade que outras tantas vezes os braços que me embalam tornam-se tão espessos e claros que a vida se torna um grande berço, um bálsamo, uma benção. É assim quando sentado na mesinha de um café numa tarde, as horas não passam enquanto tenho a companhia dos meu amigos. É assim quando ao entrar na mesma capela de sempre sinto uma luz diferente e algo me chamando do altar. É assim quando chega quem eu esperava ansioso ou quando fica pronto o assado no forno esperando a família se reunir na mesa para almoçar. É assim quando pela primeira vez visito um lugar ou quando conheço alguém que parece que sou amigo há anos. Quando chega época de comer pinhão e ver fogueira na festa junina. Assistir procissão cantando ladainhas e implorando para o santo protetor. Chegar perto de cachoeira, entrar em mata fechada, contar histórias de medo dormindo no sítio e ouvindo o grilo gritar. Inventar pescaria e fazer bagunça limpando os peixes. Ficar do lado de gente que a gente não precisa conversar, basta olhar. É assim. No meio da tarde, de um dia cansado e quase terminando desolador, quando alguém me procura e, por acaso, digo as palavras certas. Ouvir música que faz chorar ou história que encoraja. Algumas horas com um sábio professor ou com os ouvidos de um bom conselheiro. É assim. Serei feliz? Encontrarei o caminho que procuro, aquele sentido único que me foi prometido e, talvez, exigido como um dever? Quem sou? Quem é este que tanto escreve e procura? Volto a pensar na infância, vejo aquele menino correndo no pátio da escola. Quero desesperar, perguntar o porquê das ruínas, das casas vazias, da poeira que vai se assentando e tornando tudo memória... Mas algo não permite que seja assim. A rocha resistente insiste que eu a contemple. Eternidade é o que sopra no vento levantando o pó. O tempo que esmaga é o tempo que liberta, pois também o que é feio perecerá, mas apenas o que é belo restará. Instante em que meus dedos no teclado dão vazão ao que não é meu. Primeira série da escola, quando a tia fazia ditado. Copio tudo, nada deixo escapar. A letra é caprichada. Faz tempo que não percebo este sopro, não do vento, mas daquele bondoso professor. Instante solene. Razão maior para se concluir mais um trecho deste nosso itinerário.           

terça-feira, 12 de junho de 2012

10.000 visualizações

Pois é, entre equívocos de internautas, curiosos e - quem sabe - leitores, atingimos dez mil visualizações em nossa Caminhança. É um pequeno passo para o homem, mas um... Não, não exageremos!
Tenho certeza de que ao longo do caminho percorrido, todos fizemos florescer, ao menos em nós mesmos, aquela humanidade que buscamos, desenvolvemos nossos talentos, compartilhamos arte, filosofia, santidade, e nos aproximamos, ainda que separados.
É esta amizade que trilhamos, cada um na sua estrada, mas sempre próximos.
Obrigado, meus queridos amigos, por esta companhia, e vamos sempre caminhando...

segunda-feira, 11 de junho de 2012

A Justiça brasileira perante a Nova Ordem Mundial


Mensagem enviada por Olavo de Carvalho ao II Encontro Regional da Justiça do Trabalho da 15ª Região, S. José do Rio Preto, SP.

Impossibilitado de estar fisicamente presente a esse simpósio, atendo ao gentil convite do TRT de Campinas enviando como representantes, desde o outro lado do oceano, alguns exemplares dessa espécie de seres, por natureza, alados e aéreos: as palavras. Num escritor, elas são os únicos atributos que importam; e talvez, desobstruídas de toda interferência da minha presença física, acabem me representando melhor do que eu mesmo. Dito isto, entro no assunto. De tempos em tempos ouvimos falar que a justiça brasileira está em crise. Crise é um estado de conflito radical entre os princípios fundamentais e as leis incumbidas, teoricamente, de realizá-los na esfera prática. Quando uma sociedade perde de vista os princípios que a inspiram e fundamentam, as discussões sobre as leis proliferam ilimitadamente, sem que ninguém tenha a certeza íntima e sincera de defender a opinião correta, pois só os princípios poderiam fundar esta certeza e nessa hora o que falta não são opiniões, mas justamente os princípios capazes de arbitrá-las. É aí que cada um procura tanto mais teimosamente persuadir os outros quando menos persuadido ele próprio se encontra. Ao mesmo tempo, junto com as opiniões, proliferam as próprias leis, numa tentativa estéril e vã de ordenar por fora aquilo que por dentro já não é senão fragmentação e desordem no meio da cegueira geral.
Recentemente, um amigo meu, o advogado Cândido Prunes, me informou que, só no que concerne a um item específico e limitado — a alocação de recursos do orçamento federal —, o número de dispositivos legais já sobe a 5.200, entre leis, decretos, medidas provisórias, etc. etc. Idêntico florescimento quantitativo observa-se em muitos outros domínios da legislação, entre os quais é até covardia mencionar o direito tributário. A multiplicação das normas vigentes tem dois efeitos bastante óbvios: em primeiro lugar, elas perdem sua força normativa, já que cada uma é atenuada, mediatizada, desviada e eventualmente, na prática, até mesmo neutralizada por uma centena de outras. Em segundo lugar, se considerarmos — para voltar só ao caso do orçamento — que só raríssimos seres humanos são capazes de decorar 5.200 versos, quanto mais 5.200 normas, a situação assim criada torna nulo e sem efeito um dos princípios fundamentais, que é aquele segundo o qual ninguém tem o direito de alegar desconhecimento da lei. Na prática, ninguém tem mais é a possibilidade de alegar, verossimilmente, o CONHECIMENTO da lei. Nenhum brasileiro pode hoje, nos atos mais simples da vida comercial, familiar, funcional, etc., acreditar que sua simples boa-consciência espontânea seja um indicador confiável de que ele está dentro da lei. Quando as leis se transformam num emaranhado inabarcável a olho nu, a prudência recomenda que o cidadão esteja ciente de que a qualquer momento pode estar cometendo alguma infração sem perceber.
Eis aí um exemplo de conflito radical entre um princípio e as leis que, teoricamente, deveriam ser o seu prolongamento lógico. Ao contrário do que acontece no domínio do puro pensamento teórico, onde as conseqüências derivam das premissas linearmente e sem desvios, no curso tortuoso da vida histórica acontece que as conseqüências se voltam contra as premissas e, numa rebelião suicida, revogam seus próprios fundamentos. Isso é o que se denomina uma crise da justiça.
A expressão "crise da justiça" parece denotar, desde logo, o império da injustiça. E o império da injustiça, por sua vez, não pode apresentar outra aparência senão a de um caos sangrento, a luta de todos contra todos. Será isso o que ocorre no Brasil?
Algo na vida cotidiana de algumas grandes capitais parece confirmar esse diagnóstico. A atmosfera de medo, brutalidade e desconfiança, o banditismo triunfante e auto-satisfeito, a insubordinação e corrupção de tantos funcionários do Estado — tudo isto confirma a veracidade ao menos parcial do diagnóstico de injustiça generalizada que se associa espontaneamente à expressão "crise da justiça".
No entanto, quem percorra o interior do Brasil, tanto o campo quanto as pequenas cidades nas quais se distribui a maior parte da nossa população, ou mesmo as capitais de província que ainda não entraram em crescimento canceroso e conservam proporções compatíveis com a escala humana, não encontra nada daquela turva e inquietante desordem que sacode as capitais maiores. Mesmo nas regiões mais pobres, onde a desigualdade social mais pronunciada deveria — se a violência tivesse causas econômicas — produzir os maiores distúrbios, o que se observa ainda é o mesmo bom e velho povo brasileiro de sempre, ordeiro, pacífico, sempre mais inclinado a enfrentar suas dificuldades pelo trabalho e pela oração do que a jogar as culpas sobre outras pessoas (mesmo quando estas têm de fato uma parcela de culpa nada pequena) e sempre resistindo, com uma serenidade milagrosa, à tentação da amargura e do ressentimento.
Em 1997, num debate de que participei em Porto Alegre, defrontei-me com o sr. João Pedro Stedile, o qual, agitando os braços e elevando a voz, proclamava existir na área rural brasileira "um estado endêmico de violência". Com toda a calma, mas sem poder conter de todo o riso ao menos discreto que a situação me inspirava, apelei ao testemunho do próprio sr. Stedile, que dizia uma coisa enquanto orador e outra completamente diversa enquanto escritor. Pois o livro de sua autoria, "A Questão Agrária no Brasil", do qual, por uma dessas coincidências providenciais, um exemplar tinha vindo parar às minhas mãos algumas horas antes do debate, informava que em toda a extensão do campo brasileiro, onde se concentram mais de 30 por cento da nossa população, o número de homicídios, ao longo da última década, não tinha passado de 40 por ano, um número inferior ao registro, não digo anual, mas mensal, de qualquer delegacia de bairro nas grandes capitais. O número, se algo provava, era que o campo era ainda, como sempre, a região mais pacífica do Brasil. E esse número seria ainda reduzido pela metade se líderes apressados como o próprio Sr. Stedile, incitando e comandando invasões sem sentido nem proveito, não tivessem precipitado artificialmente situações de ódio que uma estratégia mais inteligente e mais humana teria evitado, alcançando com menos dores os objetivos de um movimento que, em si, nada tem de injusto.
O sr. Stedile não deve ter apreciado muito essas observações, pois, quando chegou a sua vez de me interpelar, recusou-se a fazê-lo, bufando, esfregando nervosamente as mãos e alegando que seu oponente não merecia a honra de ser interrogado, afirmação que interpretei como sinal de que suas perguntas, se as fizesse, teriam sido demasiado científicas para os meus parcos recursos intelectivos.
Mas conto esse episódio só para ilustrar que, em plena crise da justiça, reconhecida e proclamada por todos, o estrato mais profundo da vida brasileira, a vida do povo brasileiro, permanece obediente a regras tradicionais de convivência que nem a confusão das leis, nem a perplexidade dos intelectuais urbanos, nem a brutalidade e a corrupção das grandes cidades lograram abalar.
Ao dizer isto, acabo de formular um problema. Problema, dizia Ortega y Gasset, é consciência de uma contradição. Porque o fato é que nós, homens letrados, professores, jornalistas, doutores, bacharéis, nos atormentamos diante da crise da justiça, que para nós significa desorientação e caos, significa não saber o que fazer, significa perplexidade e dificuldade para discernir o certo e o errado, enquanto no interior do Brasil os homens iletrados, o povão que com tanta empáfia denominamos ignorante, parece perfeitamente orientado, perfeitamente sabedor do certo e do errado, perfeitamente capaz de obedecer quase que por instinto às regras não escritas que tradicionalmente ordenam as relações entre os homens, os grupos, as famílias, e permitem que a vida, mesmo no meio de tantas dificuldades e desventuras, ainda tenha um rosto humano.
A justiça está em crise? Sim, a justiça escrita está em crise. Os papéis avolumaram-se, os registros acumularam-se, as decisões de tantos legisladores e intérpretes foram formando uma montanha densa de enigmas e impossibilidades, até o ponto em que os tribunais inferiores, não sabendo o que fazer, têm de chutar cada vez mais os problemas para os escalões superiores e estes, como se fossem deuses, têm de arbitrar o inarbitrável, inteligir o ininteligível e produzir justiça desde o acúmulo de injustiças.
A última coisa que eu desejaria ser, hoje, é ministro do Supremo Tribunal Federal. Contaram-me que cada uma dessas criaturas tem de examinar, em média, oito processos por dia. Algum de vocês já teve de tomar na vida uma decisão forçada pela urgência das circunstâncias? Pois esses senhores tomam uma atrás da outra, incansavelmente, movidos a comprimidos para não dormir e a enxertos de pontes de safena. Sim, a justiça dos homens letrados está em crise.
Essa crise, para piorar, não vem só de dentro. De todos os lados, vendo a justiça vacilar, outros homens letrados perdem a confiança nela e a atacam, desejando subjugá-la, pedindo que seja submetida a controle externo — como se o controlador não tivesse de ser em seguida controlado por outro controlador, e este por outro, e assim por diante infindavelmente, e como se a proliferação dos controles não fosse, por si própria, a prova mais eloqüente do descontrole do conjunto.
Mas, no meio de tanta celeuma e desorientação geral, olhem em torno. Não verão um povo descontrolado e possesso, mas um povo tranqüilo e firme, fiel a normas de senso comum que ninguém lhe ensinou, que parecem vir espontaneamente do fundo das épocas ou talvez do fundo da natureza das coisas. Esse povo, que desconhece as leis, parece conhecer mais profundamente que nós, letrados, os princípios que as fundamentam. Eles bastam para orientá-lo nas questões básicas da vida, pelo menos até o ponto em que é necessário recorrer à justiça dos letrados, porque aí tudo se complica formidavelmente.
Não é de hoje que esses dois Brasis coexistem em camadas separadas e mutuamente impenetráveis como o óleo e a água: o Brasil da ordem costumeira, lento, firme, seguro de si, e o Brasil das leis escritas, nervoso, inquieto, sempre devorando-se a si mesmo em acessos furiosos de autodestruição em que o proibido se torna obrigatório e o obrigatório proibido.
Não será precisamente nesse descompasso entre a vida e as leis que reside a famosa "crise da justiça"?
Nesse caso, a justiça brasileira não está em crise só neste momento. Ela viveu em crise, pelo menos, desde o século passado.
As leis são obras de gente letrada, e a gente letrada tem o hábito de olhar menos para o povo iletrado do interior do que para as gentes ainda mais letradas do Exterior. Sim, desejamos acompanhar as transformações do mundo, temos medo do que vão dizer de nós em Nova York e Paris, tememos ser chamados de atrasados e caipiras. Por isto, tão logo alguma nova doutrina surge por lá, nos apressamos a remoldar por ela todo o conjunto das nossas leis. Nossas constituições, que se sucedem velozmente, refletem menos a ordem real da nossa vida do que os ideais da classe letrada, a que o povo permanece profundamente indiferente. Não as fizemos para expressar o que realmente somos, para manifestar por escrito os princípios que governam a nossa vida. Ao contrário: fizemo-las para ser o que não éramos, fizemos para nos tornar, por obrigação escrita, aquilo que, de olho num mundo em rápida transformação, as classes letradas desejavam que fôssemos. Repetidamente, nós, o povo, temos decepcionado essas grandes esperanças dos reformadores. Repetidamente temos insistido em ser somente o que somos.
A crise atual da justiça, novamente, sacode as classes letradas sobre o pano de fundo da indiferença popular, reiterando o descompasso entre os dois Brasis.
No momento, porém, a crise apresenta um componente novo, ausente em todas as mudanças anteriores, traumáticas o quanto fossem, com que procuramos adaptar a um mundo em mudança um povo que quase sempre insistia em não mudar. É que antes nos limitávamos a copiar, com admiração e inveja, as novas normas produzidas no Exterior. Éramos nós, os letrados brasileiros, que íamos no encalço da moda.
Agora, os novos moldes não esperam até que os copiemos. Já não somos nós que os procuramos. São eles que nos procuram, são eles que se impõem, respaldados em poderes incalculavelmente vastos que decidem os destinos do mundo e não nos perguntam se concordamos.
As novas normas, os novos valores, as novas leis, os novos critérios vêm prontos do Exterior e não querem saber nossa opinião. Os nos adaptamos, ou somos jogados para fora dos trilhos da História, ou ao menos para fora do mundo economicamente real. Nossa única escolha é entre a obediência e a exclusão. Eis a justiça brasileira ante a Nova Ordem Mundial.
Crise da justiça? Esta expressão, como vimos, tem sentido duplo. Designa, de um lado, a confusão geral entre os doutores, à qual o povo permanece largamente indiferente, regido, como sempre, por princípios e costumes que ele não aprendeu com os doutores. Este é o sentido imediato da expressão "crise da justiça".
Mas, numa escala histórica mais duradoura, ela designa o descompasso permanente entre a esfera das leis escritas, sempre em mudança para acompanhar o ritmo do mundo, e a vida do povo brasileiro, que, assentando-se nos princípios e na autoconfiança da consciência limpa, não precisa conhecer as leis para agir de maneira correta e sã.
Há duas crises da justiça brasileira: a nova e a velha. A nova reflete a dificuldade que as classes letradas encontram para criar um aparato judicial que funcione tão bem quanto se supõe que funcione a justiça de tal ou qual país dito mais avançado. Essa crise reflete o desejo das classes letras de lutar contra o arcaísmo, o desejo de entrar na modernidade.
Mas a crise mais velha, o divórcio entre leis e costumes, agrava-se precisamente na medida em que a classe letrada vai mudando as leis antes mesmo que o povo tenha se dado conta de que elas existem. Por isto dizia Euclides da Cunha: "Estamos condenados ao progresso." Sim, condenados: o progresso, a modernidade, nos vem sempre de fora, de repente, como um traje apertado que nunca nos cabe direito.
Enquanto esse desajuste consistiu apenas numa diferença de ritmo entre as classes letradas e o povo, foi sempre possível alguma solução de compromisso, graças ao gênio brasileiro do meio-termo, da conciliação, das soluções práticas fundadas num acordo tácito de descumprir as leis da maneira mais legal possível. Mas agora já não são as nossas classes letradas que buscam adaptar-se a um modelo estrangeiro admirado e invejado. Agora é o próprio modelo que chega de repente e nos impõe, do dia para a noite, as mais bruscas modificações de costumes, de normas, de leis.
A modernidade bate à nossa porta, não como um portador de boas novas, mas como um oficial-de-justiça que nos traz uma intimação: adaptem-se ou morram.
A questão que se coloca para todos nós, nesta hora, é se esta adaptação supremamente radical e brusca não abrirá até às dimensões de um abismo intransponível o hiato já existente entre a cultura do nosso povo e as instituições legais com que as classes letradas procuram revesti-la. A questão é saber se, para ajustar-nos ao mundo, não nos desajustaremos definitivamente de nós mesmos, perdendo, para sempre, o senso de unidade cultural já tão enfraquecido por tantas adaptações anteriores. A questão é saber se, para adaptar-nos à Nova Ordem Mundial, não institucionalizaremos a desordem nacional, cristalizada no abismo entre a cultura popular e as leis.
A Nova Ordem Mundial, por si — garanto —, não está nem ligando para esse problema. O que ela quer é obediência, ajuste, concordância, coerência geométrica de um mundo arquitetado por engenheiros comportamentais para a maior glória do poder global. Se para tanto for preciso esmagar aqui e ali um país a mais ou a menos, quem se importa? O carro da História, dizia Trotski, esmaga as flores do caminho.
Entre o carro e as flores, deixo portanto vocês ante esse enigma, que não me cabe resolver em seu lugar.
Que cada um, no silêncio da sua intimidade, medite e receba, com a ajuda de Deus, a inspiração melhor, e que o pensamento de todos acabe por encontrar o caminho mais afortunado para este país.
Muito obrigado a todos pela sua atenção.
 26/08/99 

sexta-feira, 1 de junho de 2012

A Arte Sacra entre "Fides et Ratio"


Reflexões sobre o mais recente livro de Rodolfo Papa
Por Tomômano Evangelista*



ROMA, segunda-feira, 28 de maio de 2012 (ZENIT.org) - A leitura da inseparável relação entre arte e fé e a análise das dinâmicas contemporâneas lançam nova luz sobre o hodierno sistema da arte e sobre a essência mais profunda da pintura, propondo uma saída e uma ajuda à liturgia.

Há pessoas que passam uma vida colocando livros em uma biblioteca e outras que colocam uma biblioteca inteira em um livro. Discursos sobre arte sacra (Edições Cantagalli 2012) de Rodolfo Papa se coloca nesta segunda categoria e é efetivamente uma summa do sistema da arte colocada ao serviço da arte sacra autêntica. Papa colocando a bom uso a rica experiência de vinte anos amadurecida em qualidade seja como historiador da arte, seja como artista e passeando entre filosofia, história, teologia e crítica de arte, tendo sempre como sólidos pontos de referência os textos do Magistério, cumpre um estudo tão singular como indispensável.  Singular porque dificilmente, na hodierna literatura sobre a arte, se encontra um volume que funde com lucidez uma leitura da condição atual com uma redescoberta, e atualização, dos escritos do passado; indispensável porque, evitando a estrada de redefinições intermináveis da arte prontas a partir dos saberes particulares, evitando assim ulteriores fragmentações teóricas, busca sair do relativismo presente para propor estáveis e lógicos modelos de referência . A estrutura escolhida para analisar tal complexo sistema é aquela do discurso, como gênero literário e  forma expressiva, que permite a focalização sobre diversos pontos e simultaneamente o avanço para um objetivo final que é a definição dos fundamentos da arte sacra. O vários capítulos afrontam diversas questões particulares e compreendem reflexões teóricas e exempla traçadas pela história da arte e que ajudam a contextualizar e definir os raciocínios. Grande atenção é reservada ao esclarecimento dos termos lingüísticos essenciais, indispensáveis na economia da análise, enquanto o uso abundante de citações, não como simples referências, mas como indicações funcionais ao texto, permite acompanhar a relação entre escrita e imagem na história do cristianismo e por outro lado conhecer os textos contemporâneos de estudiosos que, embora longe do cristianismo, chegam a intuir a solução do problema.
O objetivo do texto é definir a arte sacra e suas propriedades intrínsecas em uma época que não só perdeu o conceito de arte, tornando-o subjetivo e fluído, mas também a noção do Sagrado, uma verdadeira e real apostasia, para a qual Papa caracteriza origens e consequências. Assim pensando, o autor chega a propor uma definição geral, extraída de textos clássicos, que não apresenta como dogma, mas a insere na hodierna especulação demonstrando como é possível ainda refletir em termos positivos sobre o  estatuto epistemológico da arte: ars est recta ratio factibilium. Esta enunciação é a premissa para a descoberta de pelo menos quatro características fundamentais da arte sacra (de modo especial da arte da pintura): universalidade, beleza, figuratividade e narratividade.
Papa no Discurso sobre Artes, muito inteligentemente, depois de analisar diversas contribuições de teóricos e críticos atuais (Warburton, Shiner, Danto, Belting, Didi-Huberman), mostrando as dificuldades em chegar a instruções estáveis e abrangentes, oferece a célebre frase de São Tomás, para a qual a arte é a correta razão das coisas a serem feitas (“recta ratio”)  e declina ao plural o problema: "se o termo arte é declinado ao plural como um gênero que compreende várias espécies, o problema da sua definição aparece resolúvel, também nas situações contemporâneas". Nesta ótica, as "espécies" da performance ou das instalações ou ainda da body art  terão necessidades de um próprio estatuto e de regras peculiares que alguém deverá fornecer e assim garantirão, por diversidade, a identidade e a sua definibilidade, por exemplo pintura, e a possibilidade de afirmar o que é arte e o que não é. Observando o sistema deste ponto de vista, além disso, a chamada arte "contemporânea" com seus rituais de produção e fruição aparece agora cristalizada e a aparente multiformidade se demonstra já codificada e globalizada pelo mercado que, a partir da Pop Art, é  expressão vazia desta aparente criatividade.
Naturamente nem todos os gêneros podem estar a serviço da Igreja e com cautela Papa muitas vezes em vários capítulos detem-se sobre intrínsecas diferenças e seus perigos. Revivalsdiatópicos e diacrônicos, utópicos e  ucrônicos, a recuperação do "pensamento selvagem" e de um primitivismo original, instâncias liberais, libertinas e neo-pagãs, a busca do irracionalismo e do esoterismo são estradas buscadas do Iluminismo em diante com o objetivo de introduzir formas criadas por diferentes sistemas de arte para arrombar a estrutura do interior e discristianizar a arte. Diferente da recuperação da cultura greco-romana no Renascimento, que buscou cristianizar os elementos pagãos, o anacronismo próprio de diversas vanguardas históricas não tem relações com a Igreja, e usa de uma cultura arcaica e uma visão distorcida do sagrado.
Interessante e original, o Discurso sobre a luz mostra como na arte contemporânea se passou "de uma visão metafísica a uma materialista» também por culpa do abandono e/ou do excesso de luz. Se em pintura a claritas, a clareza e esplendor, cede lugar às cores, ou à matéria que não comunica mais visões celestes mas sempre mais se aproxima à baixeza do homem, em arquitetura acontece o contrário e o excesso de limunosidade conduz a uma desmaterialização que rejeita a dimensão criatural da realidade.
Indispensável, o Discurso sobre imagens e sobre o corpo parte de um paradoxo: enquanto se vive em uma  "sociedade da imagem" a imagem (e o corpo) muitas vezes estão ausentes também no ambiente litúrgico, onde mais do que nunca é reivindicada a sua presença enquanto a religião cristã começa propriamente com o encontro com a corporeidade de Cristo, de Deus feito homem.
A única imagem que se aceita bem atualmente é aquela tecnológica que tem efeito muito menos dispendioso. A imagem revestida ou manufaturada, tecnicamente perfeita ("Photoshapada"), fala-nos de um mundo que perdeu a busca de uma experiência interior, que rejeita a complexidade e a abertura que apenas uma arte que visa superar os limites de imitação pode garantir. Nesta ótica deve-se rejeitar a fotografia, enquanto invasão excessiva do real que anula a mediação pessoal e de consequência o hiperrrealismo: diferente da prospectiva criada para representar o mundo e as histórias sagradas, educando o senso de visão, a imagem hodierna aparece desencarnada e não adequada à devoção.
É fundamental a recuperação da beleza que Papa considera nos termos ontológicos  de "transcendente": a beleza é a perfeição,  harmonia e esplendor (integritasproportio e claritas)  e está associada à bondade e ao bem. A beleza transcende o homem e é capaz de lhe revelar algo da realidade, neste sentido comunica também a verdade; o homem, por sua parte, é naturalmente inclinado a acolhê-la e a encontrá-la. Também a arte, especialmente se serve à liturgia, não pode prescindir da beleza, dado que as obras de arte sacra devem expressar a infinita beleza divina e levar as almas para Deus. Eu recuso assim as atuais concepções relativistas de beleza (beleza como ausência, como desarmonia, como estranheza) ou as estéticas do feio, porque, como não existe um mal absoluto, porque mal é a falta de um bem, assim, não pode existir nenhuma feiúra absoluta que é a perda do belo ou o seu não perfeito desenvolvimento.
discurso sobre arte sacra  é a conclusão dos discursos precedentes porque evidenciar a centralidade das imagens sacras apresenta-se cada vez mais fundamental em uma sociedade "líquida" e "neotribal" que perdeu qualquer ligação com o transcendente. Como escreveu Joseph Ratzinger a crise de arte é um "sintoma da crise existencial da pessoa" e, portanto, colocar alguns pontos certos em um momento tanto confuso não é senão um fator positivo. O capítulo é muito complexo e explicativo graças à referência constante aos textos do Magistério dos quais emerge claramente como a arte deve celebrar a infinita beleza divina colocando-se ao serviço da liturgia, iluminada pela fé, evitando simbolismo excessivo e o realismo exagerado.
A Arte Sacra, ao contrário das mais variadas expressões criativas que parecem durar o tempo de exposição em um contexto saturado de novidades e provocações, é sempre viva e se renova continuamente no sulco da Tradição. Dadas aquelas características fundamentais e imprescindíveis: a universalidade, a beleza, a figuratividade e a narratividade, a liberdade do artista (de fé) é muito ampla. Papa, um verdadeiro artista ao serviço da Igreja, nos mostra  com este texto que há estradas ainda transitáveis e como é  irracional falar de "morte da arte". E também no hipotético caso que todo este saber venha a cair e que a dimensão do sentimento, do instinto, da arbitrariedade substitua o relacionamento fecundo entre Fides e Ratio. Citando o parágrafo A arte na espiritualidade em referência à imagem da Divina Misericórdia, é confortante saber que há um Outro, além das críticas e teorias, que continua a se comunicar através das imagens.
*Tommaso Evangelista é historiador e crítico de arte, jornalista cultural, especialista em didática de museu.
[Tradução Ir. Patricia Souza, pmmi]
Fonte: http://www.zenit.org/article-30425?l=portuguese