quinta-feira, 29 de julho de 2010

Aposentadoria - Capítulo Primeiro

Ah, quando eu me aposentar... Ah aí sim, terei tempo para tudo que sempre sonhei... Farei trabalhos sociais, viajarei o mundo, lerei os livros que sempre desejei. Isso porque o trabalho me deixa enfadonho – canso, reclamo, um dia após o outro é sempre muito enfadonho! Escreverei livros, cuidarei da saúde, conversarei com os outros, praticarei esportes, me divertirei, enfim, serei uma pessoa realizada! Hoje, nada disso é possível, faltam-me tempo, habilidades, ânimo... Mas quando eu me aposentar sim, serei outra pessoa, uma pessoa pronta para a completude, já despida dos despistes da juventude, plenamente convicto de minhas potencialidades. Ah, quando eu me aposentar... Hoje, é preciso ter uma profissão, construir uma casa, ter fontes de renda, educar os filhos, rezar, pagar meus impostos, tirar férias, ir ao shopping, ao supermercado, ao cinema... Mas quando eu me aposentar...

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Missão de Caipira

Às vezes eu fecho os olhos e imagino que o sonho delírio do nosso amigo João Augusto há de ter existido em algum lugar (ou, quem sabe, ainda existe?). Eu imagino o meu cantinho nesse mundão bonito imaginado pelo Jão: uma casinha branca, como aquela da canção, no alto de um morro e um lago para pescar de vez em quando, feito a lembrança de Pedro, o homem e seu barco no meio do mar. Mas esse mundo existe ou é invenção? Estrada de terra, rua de pedra, coreto na praça, música da banda, nem rádio, nem nada. Depois comida fresca, fogão de lenha, frutas do pomar, leite da teta da vaca Mimosa, haverá este lugar? Em mim ele mora, um lugar simples, caipirão, com sabedoria passada de ouvido e contar, em rodas de três gerações, pai, filho e avô. Por que é que tudo se modernizou? É demais algum pobre homem querer segurar o mundo e gritar: Calma! Cês correm pra onde minha gente! Onde é que vamo chegá? Ara! Que avenida mais doida é essa Avenida Paulista, já viram? Mas eu garanto, com toda certeza, que essa gente toda corre, corre, pra lá e pra cá, mas de verdade, nem sabe o que quer da vida, nem reconhece esse lugar. E pode haver coisa mais perigosa e triste que gente humana perdida, sem rumo, caída, e ainda sem um lugar pra chamar de seu? Ah! Porque essa terrinha dos meu olhos é muito minha, foi lá que eu nasci, lá que eu cresci, lá que conheço cada pedaço de chão e cada grão conta uma história. Lá não sou número, não sou pessoa, não sou cidadão: lá sou Eu mesmo, com meu nome e minha família, conhecida e reconhecida, amargada e festejada, a história triste-alegre de cada um. Lá quem conversa olha nos olhos, estende os braços, abre as portas da casa e as janelas do coração. Há o tempo das coisas, não há pressa ao que não precisa ser rápido. Namorar, por exemplo. Todo mundo sabe o ritual que já existe dentro da gente quando damos para nos encantar com alguma linda pessoa. Então, por lá, não inventamos nada, apenas deixamos as coisas andarem ao natural, em respeito a este momento tão raro que é o de se apaixonar. E com a mesma paciência com que esperamos as frutas amadurecerem nas árvores do pomar, as flores colorirem após uma necessária poda ou uma novilha estar pronta para ser ordenhada, assim também sabemos esperar o amor. Será que este pensamento esta preso num passado retrógado? Serei eu um menino velho e desdentado na flor da idade? Onde foi que deixamos a inocência e o respeito, as coisas simples e singelas, as caminhadas pelas ruas, as conversas com os vizinhos, as brincadeiras de roda, os almoços em família, o cortejo calmo e galante de uma mulher? Será saudade de um outro tempo, negação do mundo, tentação de ser feliz nesta vida que é só de passagem? Ou apenas a aparição de um antigo anseio humano que nasce agora em mim, como os românticos que cantavam a bucólica vida no campo? Anseio, sonho, medo, fuga, tentação, o que for. Algo existe, mais forte e verdadeiro, mais sincero que qualquer confissão, que pede, implora e deseja resistir ao "moderno" do mundo (e não ao mundo, bem que se diga...). Acusem-me do que quiserem, chamem-me utópico, bobo, desiludido da vida, Jeca Tatu. Nem que eu tenha que passar minha vida inteira na briga, expondo meu peito de caboclo que nunca capinou nem uma roça sequer para contar a estória e minhas mãos jamais calejadas de menino fresco de cidade e computador. Se for essa minha missão, que eu abraço com gosto e sina. Missão de caipira, caipira de moda de viola e cantadô. Não o caipira chique que anda se exibindo por ai, desde que ficou bonito falar do sertão. Que eu não caia nesta armadilha... E se tudo for feito por amor e por raiz, como acredito que é onde está costurada a minha alegria, não há perigo de armadilha nenhuma, não senhor. Por isso, desde agora e desde sempre, que assim me noto e me vejo, observando de longe minha pequena vida, hei de cantar cada dia, com a paciência que aprendo vinda do chão que nasci, este modo singelo e profundo de viver. E que meu canto não seja apenas feito de notas e palavras, mas, principalmente, de marcas fincadas pelas estradas que hei de passar. Que a esperança e a fé me dêem sabedoria, façam-me forte na contínua travessia, sem desvio grande que não possa retornar. Porque sei que este sonho não é só meu, que não caminho sozinho nesta via que escolhi ou o Pai me escolheu. Antes vou em romaria, com gente de primeira linha, caboclos moços velhos, cantadores, violeiros como eu. Caipiras de sangue e comoção, bichos bravos, guerreiros, presos a mesma missão. Neste laço que nos prende e guia, herdeiros de antiga e amada tradição, vamos passo a passo, com calma, fazendo do nosso mundo uma pequena vila, em que possamos, nós homens, repousar o cansaço e dar alegria ao coração.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

A Canção do Pântano

É num piscar de olhos que meu pensamento me trai e, num segundo, abandono minha aspiração mais alta, para, numa “crise de realidade”, conformar-me com a idéia triste e medíocre de construir minha vida pautada em um ofício fácil, com pouca preocupação e dinheiro suficiente para ter regalias. Como aquele menino d’A História sem Fim, que enfrenta a travessia do pântano negro, tendo que resistir à força destruidora do desânimo e do pessimismo que à aura terrível do lugar impele as pessoas, inclusive defrontando-se com a morte de seu cavalo amigo, pobre animal que sucumbe ao magnetismo de terror e acaba engolido pela lama maligna. Assim também somos nós conduzidos a contragosto ao heroísmo de resistir à força destruidora de um mundo que nos seduz perversamente a abandonarmos todos os nossos ideais para servirmos exclusivamente ao comodismo, ao dinheiro, à vaidade, à vida fácil, de mentira e ilusão, que dia-a-dia nos levará ao fundo do poço, como o cavalo de Artreiú. Numa espécie de masoquismo alienante, nos deliciamos de prazer e doçura, enquanto o veneno consome nossas entranhas, tal qual os meninos noiados da cracolândia.
No entanto, a realidade extravasa as dimensões deste mundo mundano e não estamos sozinhos perdidos neste pântano. Existe uma fonte de onde brotam todos os ideais e que, misteriosamente, nos atrai e nos chama. Como soldados para uma guerra urgente e necessária, somos convocados ao fronte, é preciso ter força e lutar. O general maior nos oferece as diretrizes e nos convida a viver segundo o seu exército: abracem a cruz! Abandonem tudo, não menos que tudo, e sigam-me! De pernas cansadas de tanto peregrinar pelo mundo, a beira de desistirmos de encontrar um sentido maior para nossas vidas, quase engolidos pela lama, encontramos a figura enigmática deste general. Como Madre Teresa pelas ruas de Calcutá, desencantada com sua vida de freira bem limpinha e protegida dentro dos muros do convento, quando num passeio pela cidade descobre nos olhos dos pobres mendigos indianos a voz do exigente general. Obediente, soldado fiel, parte com coragem rumo a sua missão, impelida apenas pela força desta voz que a sustenta como um touro indestrutível. Teresa sim, Teresa vai, Teresa luta. Pouco a pouco se torna um verdadeiro soldado da cruz, capaz de enfrentar e vencer o terrível pântano.
Não nos enganemos. É doce e deliciosa a nossos ouvidos humanos a canção do pântano. Facilmente e com bastante alegria negamos a cruz, renunciando-a em nome de uma vida mundana e prazenteira. Cegos e surdos, seguimos mortos-vivos a regra do mundo, sonhando com grandezas e poder, enquanto não somos engolidos completamente pela lama mortal. Todavia, dentro de cada um de nós, outra voz nos chama, o piedoso e fiel general. Com insistência e amor desmascara a terrível condição, revela-nos o campo de batalha e nos convoca a assumir uma guerra. Como um pai, nos guia, nos dá armas e nos prepara. Mas exige de nós um pequeno passo, uma pequena e singela decisão, a mais difícil de nossas vidas. Tal qual o menino Artreiú da história inventada, teremos que atravessar a hostilidade de um mundo pantanoso e demasiado mundano, para que possamos atingir a magnitude de uma vida verdadeira, profunda e cheia de sentido. Mas para isso precisaremos, como Madre Teresa, abandonar tudo e dizer sim às ordens desde amoroso general, para que nossos ouvidos sejam capazes de resistir a terrível e sedutora canção do pântano.

sábado, 3 de julho de 2010

Copa do Mundo: bobagem

Copa do Mundo. Nada tão importante. Um monte de milionários correndo, passando, chutando uma bola, suando e aparecendo em comerciais. A torcida entorpecida, rindo em suas férias na África. Os nativos felizes da vida, aparecendo pela primeira vez no mundo, como que descobertos com atraso.
E corre dinheiro e correm negócios, correm os repórteres atrás dos técnicos – mais do que mal-humorados, desbocados, debochados –, correm as emissoras atrás da audiência e correm os torcedores para frente da televisão. E tudo é exaustivamente analisado, à luz de câmeras de alta definição, com comentários por dezenas de especialistas, opinadores intrometidos e coisa e tal. Nada passa sem que o mundo inteiro tenha que observar nos cinco jornais diários uma vez, duas vezes, três vezes, infinitas vezes...
E eu, candidato à corte de intelectuais, promessa invencível de grande futuro, sucesso certo, pensador já quase histórico, sou arrastado sem qualquer resistência à mágica da Copa do Mundo.
E como vibrei e como torci, e como sorri, pulei e soprei, soprei a maldita vuvuzela, soprei até machucar os lábios, gritei até rouquear a voz. E enfim sofri, quase chorei, sai cabisbaixo e inconsolável, porque do sonho acordei num repente: a gente perde e a gente sente.
Mas que bom que assim vivi, e fui momentaneamente curado da enfermidade da intelectualóidice hipertrofiada, salvo pela mística da bola rolando. Que alegria é esta de uma união verdadeiramente mundial em torno de uma bobagem, em torno do esporte, do futebol.
Perdemos tempo, dinheiro e dias de trabalho – que coisa horrível. Pois é, meu amigo, mas dá licença, que agora é a hora do gol.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Sr. Clodoaldo

Advogado de causas extraordinárias.
Andarilho de um mundo fantástico.
Colecionador de acontecimentos inusitados.
Sempre pronto para uma boa vida.
Proseador como poucos.
Arquiteto de construções prodigiosas.
Imaginação que beira ao delírio.
Classe de um verdadeiro lord.
Humor inteligente e instigante.
Conhecedor de livros que nunca leu e que sequer ouviu falar.
Membro de academias de letras.
Sabedor das artimanhas do poder.
Capaz de enganar a si mesmo com extrema facilidade.
Incoerência, acima de tudo.
À beira da morte, sem perder o otimismo.
Demente fora do hospício.
Admirador da boa música.
Amigo do sultão do Brunei.
Sempre soube o caminho a tomar.
Arrogância de dar medo.
Franciscano da gema, como está evidente...